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Controle de doenças versus direitos fundamentais

Policiais tailandeses estão diante de telões onde se lê "Nossos corações com Wuhan" (Foto: Mladen ANTONOV/AFP)

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Em tempos de medidas drásticas para se controlar uma possível epidemia do coronavírus e o estudo de normas para regular quarentena no Brasil, chama atenção uma notícia. Familiares de doentes hanseníase venceram, depois de quatro anos, uma batalha jurídica que assegurou uma indenização por dano moral pelo afastamento compulsório de seus entes na década de 60.

Uma lei federal permitia que o governo brasileiro segregasse filhos sadios de pais, pacientes com hanseníase, em locais conhecidos como preventórios (orfanatos e educandários), uma espécie de orfanato para crianças com pais vivos. Os pais ou parentes eram levados para os chamados hospitais colônias. Essa separação provocou, em um série de famílias, marcas indeléveis.

Em março de 2015, dois irmãos entraram na Justiça do Rio Grande do Sul pedindo à União uma indenização por danos morais, iniciando uma batalha judicial que passaria por três instâncias e levaria quase quatro anos. Isso porque, no final de 2018, o Superior Tribunal da Justiça (STJ) decidiu que o caso configura "um quadro de alienação parental forçada por políticas governamentais equivocadas" e que a União deverá indenizar os irmãos em R$ 50 mil cada. A decisão transitou em julgado e não cabe mais recurso.

Os autores da ação tornaram-se, assim, os primeiros filhos segregados pela extinta política de hanseníase brasileira a ganhar na Justiça o direito a uma indenização da União. Importante ressaltar que é missão do Estado o controle de doenças visando à saúde e que se trata de um ato de interesse público. Mas, muitas vezes em nome do dever de cumprir essa missão, as normas ultrapassam direitos individuais constitucionalmente garantidos – o que aconteceu nesse caso em especial.

Sabe-se que a hanseníase é uma doença há muito tempo diagnosticada, existem relatos na própria bíblia de sua existência, que era chamada doença de Lazaro, um conhecido personagem do cristianismo. E, desde àquela época, estiveram presentes políticas segregacionistas com o objetivo de tratamento e de controle dessa doença. No Brasil não foi diferente: houve políticas públicas com escopo de isolar os portadores da doença de pessoas saudáveis para evitar ou diminuir o risco de contágio. Existiram algumas leis que impuseram essa medida de separação, para que não houvessem mais pacientes contaminados. Tal era o preconceito gerado pela então ausência de cura e desconhecimento sobre a forma de contágio da doença, que até as casas dos infectados eram queimadas.

Relevante dizer que, apesar de o Estado obrigar o isolamento dessas pessoas, comprovado por registros levantados pela própria associação de pacientes de hanseníase, não eram criadas condições para que esses doentes fossem realmente tratados ou tivessem uma vida digna. Eles eram privadas de sua família de origem, de seu trabalho e de educação. Há relatos de abuso físico e moral.

Na década de 50, iniciou-se tratamento o uso da sulfona, que permitiu a recomendação de tratamento ambulatorial e gradualmente a implantação de medidas para combater o preconceito em relação à doença. As incapacidades e deformidades dos pacientes com hanseníase contribuíam para o aumento de isolamento do paciente, o qual, sentindo-se sem função na sociedade e sem importância para sua família, apenas sobrevivia e sofria.

O Decreto 16.300 de 31 de dezembro de 1923 afastava os filhos sadios do convívio familiar, ainda que no casal apenas um estivesse contaminado. Também o Decreto 619/1949 dispunha que todo recém-nascido, filho de doente, deveria ser compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais.

Até 1962, o tratamento pela segregação era amparado pela lei; desta forma, não se pode dizer que havia ilegalidade nessa separação compulsória dos doentes com relação à vida em sociedade. A separação entre pais e filhos, eivada de dor e de traumas, representou um caso de alienação parental, sem dúvida. Afinal, o Estado não deu condições a essas famílias de conviverem, enfrentando a doença e o preconceito social juntos. Alguns bebês foram adotados, sem que houvesse registro dos pais naturais.

Os bebês eram levados para orfanatos e outras instituições, com a intenção de que sua saúde fosse preservada; ao menos, a saúde do corpo. Ocorre que, a partir de 1962, essa política de segregação deixou de ser uma política estatal. Pelo contrário, as medidas que implicassem de alguma forma, numa quebra de unidade familiar ou desajustamento ocupacional, no qual a pessoa deixasse de trabalhar por conta da doença ou que gerassem outros problemas sociais deveriam ser evitadas.

Nos anos 70, teve início a campanha pela mudança do nome no Brasil. Em 29 de março de 1995, foi promulgada a Lei 9.010, pela qual se vedou o uso da palavra “lepra” nos documentos oficiais, como forma de diminuir a discriminação.

Fato é que muitas crianças foram afastadas de seus pais quando já existia uma lei dispondo que o isolamento obrigatório não deveria ocorrer. Ou seja, passou a ser um ato ilícito e, sem dúvida, imoral. No referido processo, as crianças estavam isoladas de seus pais sem o amparo da lei. Pior constatar que, apesar da intenção do Estado em separar as crianças para que elas ficassem saudáveis, elas foram privadas de tudo aquilo que uma criança não pode ser privada, como a perda de sua história afetiva, de suas origens, do carinho dos pais, para que se transformassem em adultos confiantes e seguros.

Justificável, portanto, em nome dessa perda afetiva, que o Estado indenize essas pessoas. Importante que se diga que o reconhecimento de que houve violação sistemática desses direitos civis partiu do próprio Estado que, em 2007, editou a MP 373,  após convertida na Lei 11.520, que dispõe sobre a concessão de pensão  mensal e vitalícia às pessoas acometidas pela hanseníase e que foram submetidas ao isolamento e à internação compulsória. Vale frisar que essas pessoas também foram submetidas a violências e trabalho escravo, pois eram obrigados a trabalhar onde eram acolhidas, nos chamados hospitais colônias. Impressiona a informação do Movimento de Reintegração de Pessoas atingidas pela hanseníase de que ainda havia a internação compulsória até 1986.

Ou seja, manteve-se acesa a chama política de segregação como política de saúde pública. Como explicar que houve por mais de 20 anos essa política de saúde pública sem amparo legal?

Enfim, se a lei já reconhece ter havido abusos, é justo que o Estado também indenize os familiares dessas pessoas, que ficaram longe de seus entes queridos. Claro que não é possível compensar de outra forma, que não seja dando um conforto financeiro nesse momento.

Todas as mazelas sociais e psíquicas não poderão ser supridas por qualquer valor que seja o da indenização. Entretanto, é uma forma de se alertar para que novas políticas públicas que venham a ferir a tutela dos direitos individuais em nome do interesse público não acabem por se mostrar, futuramente, um campo fértil de violação de direitos humanos.

Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, membro do Comitê de Ética para pesquisa em seres humanos da UNESP (SJC) e presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde.

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