No dia 19 de março, o governador do Rio de Janeiro publicou o Decreto 46.980, determinando a suspensão dos voos, a circulação dos ônibus e a atracação de cruzeiros oriundos de países ou estados com circulação do coronavírus. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) reagiu, afirmando que os aeroportos são bens federais e, portanto, somente a União poderia determinar o seu fechamento.
No dia seguinte, o presidente da República editou a Medida Provisória 926/2020, estabelecendo que as autoridades poderão adotar de modo excepcional e temporário, no âmbito de suas competências, restrições à entrada no país e à locomoção entre estados e municípios, conforme recomendação técnica fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
No dia 24 de março, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, atendeu em parte o pedido formulado pelo PDT na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341, ajuizada contra a MP
º 926. Segundo o PDT, a MP esvaziaria a competência e a autonomia conferidas pela Constituição Federal a estados e municípios para cuidar da saúde e executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica e, assim, impor isolamento, quarentena, restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos e a interdição de atividades e serviços essenciais.
Em sua decisão, o ministro manteve a MP 926/2020 em vigor. Entendeu que a norma não esvaziaria, antes endossaria atos de restrição editados por autoridades, no âmbito das respectivas competências, para o enfrentamento ao coronavírus. Por isso, não haveria ofensa à Constituição. Com finalidade pedagógica, concedeu liminar para tornar explícita a competência concorrente, em termos de saúde, de modo que a MP 926 não afasta a tomada de providências normativas e administrativas por estados e municípios.
Entretanto, um dia depois, em nova decisão, Marco Aurélio negou a liminar requerida pela Rede Sustentabilidade na ADI 6.343 contra artigos da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento do coronavírus. Afirmou que, “ante pandemia, há de considerar-se a razoabilidade no trato de providências, evitando-se, tanto quanto possível, disciplinas normativas locais”.
A organização político-administrativa do Brasil compreende a União, estados, Distrito Federal e municípios, todos autônomos. Ao contrário do que poderia supor o senso comum, não há hierarquia entre os entes da federação. Cada qual exerce competências próprias, conferidas pelo texto constitucional. À União compete, por exemplo, disciplinar a aviação civil, o transporte rodoviário entre estados e definir quais são os serviços e atividades essenciais. Aos municípios compete organizar o transporte coletivo municipal e legislar sobre assuntos de interesse local, tais como o horário de funcionamento do comércio. É atribuição dos estados a disciplina do transporte intermunicipal e outras competências residuais que não tenham sido conferidas à União ou aos municípios.
Visto sob este prisma, o tema não desafiaria maiores dúvidas. A questão é que, nos termos do artigo 23, II, da Constituição, o cuidado com a saúde é competência comum da União, estados e municípios. Ou seja, todos são responsáveis, devendo prevalecer, na expressão de Fernanda Dias Menezes de Almeida, o “ideal de colaboração entre as pessoas político-administrativas”. Não é, todavia, o que se tem visto no enfrentamento ao coronavírus, marcado, lamentavelmente, pelos mesmos conflitos pessoais e partidários que há tempos dividem e atrasam o país.
A penumbra entre as esferas de competência é ampliada pelo artigo 24, XII, da Constituição, que atribui a União e estados competência concorrente para legislar sobre a proteção e defesa da saúde. À União cabe editar normas gerais e aos estados, normas suplementares visando o atendimento de situações regionais específicas. No contexto de uma pandemia, é permitido aos estados restringir voos para conter a disseminação do vírus em sua população?
O presidente do STF, Dias Toffoli, declarou que a decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio na ADI 6.341 será examinada pelo plenário na sessão do próximo dia 1.º de abril. A iniciativa é oportuna e inadiável, por três razões. Primeiro, porque ao Supremo compete a guarda da Constituição, cabendo a ele arbitrar os conflitos entre os entes da Federação resultantes da distribuição constitucional de competências. Segundo, porque as decisões do STF em ADI são vinculantes para as demais instâncias do Poder Judiciário e para o poder público. Terceiro, porque, não bastasse o efeito vinculante, decisões colegiadas, tomadas após amplo e público debate, tendem a ser mais respeitadas. Apesar das incertezas decorrentes do coronavírus, espera-se que a orientação do Supremo propicie, nos limites do que está ao alcance do Direito, maior clareza e segurança jurídica para autoridades sanitárias, cidadãos e setores econômicos. Com a palavra, o STF.
Francisco Zardo, mestre em Direito do Estado, é professor de Direito Administrativo em cursos de pós-graduação e presidente da Comissão de Gestão Pública e Controle da Administração da OAB/PR.
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