A taxa Selic alcançou seu menor patamar histórico, deve cair ainda mais e uma das consequências é a redução dos rendimentos líquidos de aplicações financeiras. Nos investimentos de renda fixa, por exemplo, descontado o imposto de renda e a taxa de administração, a rentabilidade pode ficar abaixo da poupança. A situação piora quando se trata do rendimento real da aplicação, ou seja, o rendimento subtraída a inflação. Os resultados são decepcionantes. Este cenário, aliado ao fraco desempenho da economia nos últimos anos, tem levado cada vez mais brasileiros a procurar a bolsa de valores na tentativa de elevar seus ganhos.
Em 2002, apenas 85 mil pessoas físicas investiam em ações no Brasil. Neste ano, o número de investidores ultrapassou 1 milhão de pessoas. Isto representa apenas 1% da população economicamente ativa, quando nos Estados Unidos o índice é de quase 60%. Mesmo assim, demonstra claramente o crescimento desse mercado no país e o surgimento de um novo perfil de investidor.
Nessa busca por opções mais rentáveis, o brasileiro passou a conviver com a linguagem do mercado financeiro. Termos como volatilidade, carteira de ativos, home broker e day trade entraram no vocabulário. Contudo, talvez a principal palavra seja “risco”. A chance de aumentar ganhos está relacionada a riscos maiores e possíveis perdas.
Os mecanismos de proteção são insuficientes para criar a segurança necessária aos investidores
Disso todos sabem ou deveriam saber. Ocorre que há outro risco que passa quase despercebido por aqueles que não têm tanta intimidade com o mercado: a liquidação e falência de corretoras de valores. Recentemente, várias corretoras foram liquidadas pelo Banco Central e tiveram a falência decretada judicialmente, deixando um lastro de aborrecimentos e prejuízos para muitos investidores. O caso mais recente é da corretora carioca Um Investimentos. No ato de liquidação, o BC menciona “a grave situação patrimonial, as graves violações às normas legais que disciplinam a atividade da instituição, bem como a existência de prejuízos que sujeitam a risco anormal os seus credores”. São 7,8 mil clientes ativos afetados. Basicamente, os mesmos fundamentos foram empregados pelo BC para liquidar, em 2018, a corretora Gradual, uma das mais conhecidas do mercado, que tinha R$ 7 bilhões em custódia e cerca de 60 mil clientes. A lista de corretoras liquidadas segue com TOV, Walpires e Diferencial, entre outras.
As corretoras de valores são instituições financeiras que fazem a intermediação entre o investidor pessoa física e a bolsa de valores, atuando principalmente na compra e venda de ativos financeiros para seus clientes, especialmente ações, sendo imprescindíveis ao acesso à bolsa, que é hoje representada pela B3 – Brasil Bolsa Balcão, empresa resultante da união entre a BM&FBovespa e a Cetip. A B3 é a responsável pela admissão da corretora a atuar nos seus mercados e por fiscalizá-la, disponibilizando no seu site a lista de todas as corretoras aprovadas e credenciadas. Há também fiscalização pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo BC, a quem compete autorizar o funcionamento de corretoras.
Assim, quando uma pessoa física escolhe uma corretora credenciada, geralmente faz um cadastro e transfere determinado valor, que inicialmente vai para uma conta corrente não movimentável e a partir da qual são realizados investimentos, escolhidos pelo cliente, podendo ou não haver orientação e assessoria pela corretora.
Neste ponto existe uma grave fragilidade desse sistema que põe os investidores em risco: Ao consultar o rol das corretoras credenciadas no site da B3, é de se supor que todas estejam seguramente aptas a intermediar os investimentos, certo? Errado. Algumas corretoras, mesmo punidas em processos administrativos e operando em desacordo com regras de credenciamento, permanecem anunciadas sem qualquer asterisco ou alerta. Na prática, isso faz com que investidores continuem enviando dinheiro a corretoras que estão no caminho da falência. Em vez de serem suspensas ou de existirem avisos claros, as corretoras continuam atuando normalmente. Por vezes, quando uma atitude mais rigorosa acontece, como é o caso da liquidação extrajudicial pelo BC, é tarde demais para muitos clientes.
Quando ocorre a operação de compra e venda de ações, estas ficam registradas com o nome e CPF do investidor na Câmara de Ações (antiga CBLC), responsável pela guarda dos papéis negociados na bolsa. Entretanto, o perigo está no saldo livre na conta da corretora: aquele temporariamente não investido, enquanto o cliente não resgata ou reinveste. Nos casos de liquidação e falência, os saldos podem simplesmente ser perdidos. Não raro isso ocorre, iniciando grandes problemas, pois surge um limbo pelo qual ninguém parece ser responsabilizado pelos danos e prejuízos, que acabam sendo suportados pelos pequenos e médios investidores.
Esta situação evidencia uma das desvantagens da autorregulação característica da bolsa de valores: o conflito de interesses e o corporativismo, que tem levado a um reduzido rigor e aplicação de sanções pouco expressivas ou muito tardias, que estimulam condutas prejudiciais às partes hipossuficientes dessa relação de consumo. Há caso de corretora que reiteradamente descumpriu normas que deveriam suspendê-la do mercado, embora o máximo que tenha ocorrido antes da liquidação pelo BC foi a aplicação de multa leve, que reverteu à própria B3.
Os mecanismos de proteção são insuficientes para criar a segurança necessária aos investidores. Por delegação da CVM, a B3 criou a Bovespa Supervisão de Mercados (atual BSM Supervisão de Mercados), braço regulatório que administra o Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos (MRP). Ocorre que o ressarcimento dos prejuízos pelo MRP é limitado a R$ 120 mil e impõe condições que levam 44% das reclamações a serem julgadas improcedentes, apesar de a proporção entre as reclamações ligadas a “liquidações extrajudiciais” ter disparado em relação a “outras hipóteses”, de 49% para 94% do total de reclamações, entre 2013 e 2016.
O resultado disso é uma engrenagem que gera lucro anual bilionário à B3, detentora de um monopólio autorregulado, no qual algumas corretoras operaram quando não deveriam mais estar operando – com a complacência da B3 –, expondo investidores a riscos seríssimos, em muitos casos gerando prejuízos milionários.
Esta situação nociva precisa mudar e tudo indica que não será pelas mãos autorregulatórias do mercado. É preciso que atuem órgãos como Ministério Público Federal e entidades de proteção ao consumidor, para impedir que suadas economias de pequenos e médios investidores brasileiros sejam perdidas.
Alisson Ramos da Luz é graduado em Direito, especialista em Políticas Públicas e estudioso do mercado de capitais.