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Não prosperou o debate sobre mãos sujas e mãos limpas iniciado no encontro do presidente Lula com os intelectuais próximos ao PT. Ou melhor, o debate prosseguiu, mas em outra direção, com outros protagonistas. Aqueles que mostraram-se resignados ante a inevitabilidade dos desvios éticos na política deixaram o pódio alegando que estavam sendo submetidos a um linchamento moral. Não é verdade: simplesmente recuaram ante a possibilidade de serem obrigados a incluir nas respectivas biografias a defesa de uma causa, no mínimo controversa.

Caetano Velloso em entrevista à "Folha", o ex-presidente FHC, no dia seguinte, em carta aberta e o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes, na missa do Dia dos Excluídos, retomaram a questão da moralidade de forma mais contundente e profunda. Irreversível.

O cantor-compositor não é político e na condição de intelectual procura antes de tudo preservar-se do engajamento antiintelectual, por isso colocou o dedo na ferida: "... Há uma regressão no país quando se passa uma esponja no mensalão... Lula se disse traído mas em cada solenidade de despedida dos que cometerem delitos, levantou a voz para tecer loas a essas figuras. E pôs a culpa num complô das elites através da mídia..."

FHC, ao contrário, é o político absoluto, atacou com veemência a "podridão" reinante, mas reconheceu que o PSDB vacilou ao proteger o senador Eduardo Azeredo, então presidente do PSDB, acusado de ter se beneficiado do valerioduto em 1998.

De forma inspirada, o arcebispo de São Paulo, cardeal dom Cláudio Hummes, acrescentou a um debate que os intelectuais não tiveram coragem de levar adiante, o elemento social, definitivo. Ao considerar a corrupção como "grave pecado", levou a discussão sobre a roubalheira numa esfera mais ampla do que os coquetéis das elites políticas. Para ele, a corrupção agrava a exclusão social, é o principal obstáculo do processo de mudança.

É possível que essas opiniões não alcancem os grotões onde se consolida a preferência pelo presidente Lula, seus companheiros de partido e seus fiéis aliados nas próximas eleições. A questão da corrupção, porém, transcende a estas eleições, não pode confinar-se ao calendário político. É uma Bastilha que precisa ser derrubada em regime de tempo integral. Independentemente das urnas.

Roubar o erário é, antes de tudo, uma perversão social, um atentado contra o povo. A defesa do ‘rouba, mas faz’ paira acima das etiquetas ideológicas, é universal: já foi bandeira da direita (Ademar, Maluf etc.) e agora se incorpora sutilmente aos paradigmas ditos esquerdistas de que os fins justificam os meios.

Impossível defender as idéias de Marx e ignorar Hegel, intransigente defensor da ética não apenas no plano pessoal, mas principalmente na sua dimensão institucional. É pérfida a manobra de colocar na cesta da ética apenas as questões relativas aos abusos com os dinheiros públicos. O relativismo democrático ora dominante em certas esquerdas latino-americanas é ainda mais pernicioso porque agride a moralidade e, junto, anestesia as instituições capazes de preservá-la.

Fala-se muito em fascismo, mas poucos recordam o repertório de imoralidades políticas colocadas em prática por Benito Mussolini, originalmente líder socialista. Também ele oferecia migalhas às massas miseráveis, também ele condenava a democracia dos aristocratas.

Desnorteada, sem as cartilhas e as estratégias globais do antigo Politbirô moscovita, a ultra-esquerda latino-americana embarca novamente num de seus ciclos de delírio. Ao recusar qualquer resultado que não o consagre como o vitorioso no último pleito, o mexicano López Obrador (em entrevista ao Estadão, nesta sexta-feira) manda as instituições [democráticas] ao diabo. Honesto, não aposta no "rouba mas faz" mas coloca todas as suas fichas num impasse político – igualmente imoral – para ser decidido nas ruas.

O boliviano Evo Morales, ansioso por um guru, sequer disfarça a tentativa golpista para converter a Assembléia Constituinte num fórum acima da atual Constituição, apto perenizar-se através de decretos constituintes. Não rouba, não faz e, ainda por cima, não tem qualquer apreço pelo sistema democrático que o levou ao poder.

O valerioduto, o mensalão e os sanguessugas são escândalos pontuais. Uma democracia intransigente será capaz de desmascará-los por inteiro e punir todos os responsáveis. Uma democracia temerosa de ser tachada de "moralista", deixará tudo como está. Será a próxima vítima.

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