Alterou-se recentemente – infelizmente, sem a divulgação merecida – o cenário jurídico segundo o qual as cotas raciais não eram impositivas para estados e municípios, de modo que cabia ao poder político de cada ente federativo deliberar pela adoção ou não de tais medidas, entendimento reconhecido pelo STF no julgamento da ADC 41. Hoje em dia, ao revés, as instituições públicas estão comprometidas com a adoção das ações afirmativas em prol das pessoas e grupos sujeitos ao racismo – notadamente, da população negra e indígena.
Essa significativa mudança é fruto da recente ativação, no plano do Direito brasileiro, da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, que foi ratificada com status de emenda constitucional. A respectiva Carta de Ratificação foi depositada em 28 de maio deste ano pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, na Organização dos Estados Americanos, dando publicidade à sua decisão de dar pleno cumprimento à normativa interamericana. Assim, a Convenção passou a integrar a ordem jurídica doméstica, compondo o bloco de constitucionalidade nacional, o que se tornou factível a partir da abertura dada pelo § 3.º do artigo 5.º da Constituição Federal.
Destaque-se que esse instrumento interamericano e constitucional de direitos antirracistas, inspirado nos princípios da igualdade e da não discriminação, fez fervilhar a obrigação por parte do Brasil de formular medidas especiais para proteger os direitos de indivíduos ou grupos que sejam vítimas da discriminação racial. Mais detalhadamente, por intermédio do artigo 5.º da referida Convenção, o Estado brasileiro se comprometeu a adotar políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o exercício dos direitos das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, a inclusão e o progresso.
Portanto, a linguagem do diploma normativo interamericano quanto às ações afirmativas é inequivocamente vinculante, no que inova a ordem jurídica brasileira. Logo, é possível dizer que está em vigor mandamento constitucional no sentido de que sejam criadas, mantidas e ampliadas as cotas raciais, entre outras ações afirmativas, não havendo mais espaço, portanto, de discricionariedade para a não adoção de cotas raciais. As ações afirmativas raciais, agora preconizadas por norma tética na dimensão “nomoestática” – nas palavras de Luigi Ferrajoli –, estão inseridas na esfera do “não decidível” e do “não decidível que não”, de maneira que os agentes públicos infraconstitucionais não podem mais deliberar contra as cotas nem podem deixar de dispor sobre elas. A partir de agora, a “mera” omissão das instituições públicas em relação às ações afirmativas, como as cotas raciais, constitui-se flagrante afronta ao conteúdo bloco de constitucionalidade e, por consequência, ato omissivo ilícito que deve ser corrigido pela atuação do Judiciário.
É possível dizer que está em vigor mandamento constitucional no sentido de que sejam criadas, mantidas e ampliadas as cotas raciais, entre outras ações afirmativas.
Parafraseando a admirável e inspiradora Conceição Evaristo, para quem “a questão do negro não é para nós resolvermos, é para a nação”, e amparados pela potente, cogente e necessária normativa interamericana e constitucional, ousamos arrematar dizendo que a inclusão equitativa e com igualdade de oportunidades dos grupos racialmente discriminados em um país tão desequilibrado e injusto é tarefa urgente para todas as instituições, órgãos e agentes públicos brasileiros.
Miriam de Freitas Santos é procuradora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (Nupier) do Ministério Público do Paraná (MPPR). Rafael Osvaldo Machado Moura, mestre e doutor em Direito, é promotor de Justiça do MPPR.
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