Volta novamente à discussão a questão das cotas para acesso à universidade pública, privilegiando negros e estudantes de escolas públicas, agora no Senado Federal, onde políticos dos mais variados matizes concordam se tratar de tema altamente polêmico. Em primeiro lugar, a forma como se propõe a seleção de parte dos alunos contraria toda a nossa tradição com relação às questões raciais, mais especificamente com relação aos negros.
No Brasil a miscigenação racial é uma característica social, herança do comportamento português de miscigenar para manter o poder nas colônias. É o contrário da tradição norte-americana, onde efetivamente os negros, principalmente no sul, foram discriminados muitas vezes de forma violenta, não apenas com a segregação em ambientes públicos e privados, mas com a proibição do acesso a determinadas instituições, como as universidades. Esses comportamentos levaram à reação dos negros desembocando no movimento pelos direitos civis, encabeçado principalmente por Martin Luther King, que por sinal pagou com a vida pela ousadia de enfrentar o poder dos brancos.
Ora, o que se pretende com cotas de viés racial é repetir parte da legislação dos direitos civis americanos que, por via legal, rompeu com a terrível discriminação reinante. Esse, porém, não é nosso caso. O acesso às universidades, em princípio, é dificultado no Brasil, não pela cor da pele, mas pela pobreza de negros, brancos, amarelos, pardos, mamelucos, e pelo descaso do poder público em prover ensino de qualidade na maioria das escolas públicas.
Abro parênteses: a pobreza não impediu inúmeros estudantes paupérrimos que conheci na vida universitária de estudar, pois contavam com um restaurante universitário subsidiado e uma Casa do Estudante para viver. Tinham diversas cores de pele e muitos eram obrigados a trabalhar. Quando superintendente da Fundação da Universidade Federal do Paraná (Funpar) para o Desenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e da Cultura, ao contratar uma auditoria, escutei do responsável: "Minha empresa só vai cobrar desta fundação os custos da auditoria; não quero auferir lucro porque não fosse o apoio que tive para me alimentar no restaurante universitário da UFPR hoje eu não estaria aqui". Um exemplo de estudante pobre que, pelo esforço, conseguiu superar as dificuldades impostas pela sua estratificação social. Pode-se concordar, no entanto, tratar-se de uma exceção.
Voltando ao caso geral: as informações que chegam do Senado dão conta da tendência daquela casa em considerar, para efeito de cotas, não a questão racial, como aprovado na Câmara Federal, mas a situação econômica do candidato, privilegiando estudantes de escolas públicas, superando, dessa forma, a equivocada proposta de cunho racial. No entanto, a proposta resolve apenas parte do problemático projeto. Outra questão se refere à redução do número de vagas para determinado estamento social: os que estudaram em escolas particulares. Assim se houver, à guisa de exemplo, 60 vagas em determinado curso, 30 seriam preenchidas por critério de mérito e 30 por critério de mérito relativizado, uma vez que seriam ocupadas por egressos das escolas públicas, mesmo que os estudantes que perderam vagas tenham tido médias superiores às dos cotistas.
Como é do conhecimento da sociedade, o fato de se estudar em escola privada nem sempre decorre de condição social privilegiada. De forma geral, envolve a dificuldade de uma classe média altamente instável em seu nível de rendimento, que optou pela escola privada por saber das dificuldades do ensino público. Esta opção normalmente representa um enorme sacrifício: renegociação de pagamentos, redução do padrão alimentar, diminuição ou corte de atividades de lazer, dívidas e noites maldormidas. E agora? Como ficam essas famílias que fizeram enorme esforço para viabilizar o acesso dos filhos à universidade pública, de melhor qualidade? Muito simples: têm à sua disposição metade das vagas de acesso à universidade sendo, desta forma, alijadas de direitos que julgavam existir. Por esta razão as propostas de cotas para acesso à universidade pública, como estão colocadas, são excludentes. Ao incluir estudantes de escolas públicas, excluem estudantes das escolas privadas.
Para um sistema mais justo, o correto seria seguir a Escola Paulista de Medicina (leia-se Universidade Federal de São Paulo): aumentar o número de vagas para suprir as cotas. Mas ainda isto não basta. É necessário estabelecer, para os cotistas, cursos de nivelamento, comuns em cursos de pós-graduação; apoio financeiro para a manutenção do estudante com moradia e alimentação.
O mais importante é recuperar a qualidade do ensino público, fundamental e médio, esforço que vem sendo feito pelo governo federal, mas cujo sucesso depende também de estados e municípios, muitos dos quais parecem não superar a tradição política do país: esgoto não dá votos por estar enterrado e não aparecer. Enterram também a educação por não dar retorno político imediato.
José Henrique do Carmo é professor aposentado, ex-pró-reitor de Planejamento da UFPR e ex-diretor superintendente da Funpar.
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