Recentemente, duas situações chocantes de abuso contra crianças deixaram o país estarrecido. Na primeira, uma babá foi filmada maltratando um bebê de 7 meses. Na segunda, uma pessoa altamente esclarecida (procuradora de Justiça aposentada, recentemente presa), torturou uma menina de 2 anos que estava sob sua guarda provisória para adoção. Houve uma denúncia para este caso e existe até uma gravação da raivosa senhora gritando e xingando aquela menina que foi retirada de um abrigo (onde estava justamente por maus-tratos) e já a chamava de "mamãe". Quando vieram a público as fotos dos olhos roxos e inchados da menina, as pessoas ficaram horrorizadas, indignadas, e algumas, até incrédulas. Uma babá desprovida de formação educacional, tudo bem, mas uma profissional da lei, impossível!

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Como uma das minhas áreas de estudo trata justamente de "estilos educativos parentais", que pesquisa como os pais dão os cuidados necessários para propiciar pleno desenvolvimento social, emocional e cognitivo aos seus filhos, fiquei igualmente estarrecida, mas não incrédula. Lembrei aos incrédulos que há pouco tempo foram condenados pela morte da pequena Isabella seu próprio pai e madrasta e, vejam bem, tudo começou com um simples tapa no carro. Sei muito bem o que pais e cuidadores são capazes de fazer em nome da "disciplina" dos filhos. Casos como esses, infelizmente, ocorrem aos milhares no mundo todo. No Núcleo de Análise do Comportamento da UFPR fazemos pesquisas frequentes sobre o tema, e os dados revelam que os pais justificam palmadas e surras simplesmente "porque também foram educados dessa maneira" e afirmam que "querem somente educar", mesmo quando usam varas, cabos de vassoura, ferro quente, chacoalham violentamente ou espremem crianças contra paredes. A questão cultural milenar que indica castigos corporais para educar é tão perniciosa quanto pacto do silêncio familiar e permite que, no século 21, a maioria absoluta de maus-tratos, lesões corporais e violência contra a criança, venha dos pais ou responsáveis.

Castigos "imoderados" estão proibidos de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas alguém saberia dizer exatamente a diferença entre a magnitude, intensidade e frequência de tapas "moderados" e "imoderados"? Não existe um palmômetro. Claro que há diferença entre uma surra e um tapa, mas o princípio é exatamente o mesmo: usar força e causar dor para obter obediência ou simplesmente para punir. O próprio advogado da procuradora presa disse, em entrevista a jornais, que sua cliente não havia agredido a menina, ela simplesmente "quis impor sua vontade para poder educar".

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Entre os riscos que uma educação coercitiva pode causar e as melhores formas de educar, é preciso ressaltar que, no mínimo, as palmadas são indignas, humilhantes e absolutamente ineficazes. O ser humano conquistou lentamente os direitos humanos, depois os direitos dos trabalhadores, mais tarde os direitos das mulheres, mas apesar de a Convenção dos Direitos da Criança (1989) ser o documento mais ratificado da história da humanidade, a permissividade em relação ao uso de punição corporal é torpe. Se alguém chutar um gato na rua poderá ser denunciado por maus-tratos, mas pais podem bater, puxar, beliscar e empurrar seus filhos – em casa e em público – e ninguém pode falar nada! Há alguns meses ouvi um debate sobre o tema e dois educadores apresentaram receitas estapafúrdias aos ouvintes: um disse que se os pais errarem não devem pedir desculpas à criança, senão ela perderá o respeito! Outro falou que não se deve surrar, mas que, às vezes, as crianças "pedem" um limite maior e uma palmada é justificada! Outro famoso educador escreveu que, quando a criança não obedecer, os pais podem "dar uma chacoalhada"! Pois é. Se os próprios profissionais não se atualizam, não leem pesquisas recentes sobre os temas e desfiam argumentos incorretos para o público leigo, há muito chão pela frente para mudar essa cultura de tapas e palmadas.

Dizem que não existe manual para educar uma criança. Em verdade, a Psicologia estuda as práticas educativas parentais há mais de 50 anos e, existe sim, um extenso cabedal de fatores considerados de risco e de proteção para a educação e socialização de crianças e adolescentes. Embora não exista um manual universal que sirva para todas as famílias, os princípios que devem ser utilizados e aqueles que devem ser evitados são claros e inequívocos para a ciência. É preciso estratégias melhores de divulgação e de prevenção desse tipo de violência que passa facilmente de uma geração à outra. Diante de situações como as citadas e com a dificuldade de a sociedade entender que é preciso proteger e capacitar as famílias, talvez fosse melhor mesmo que cada criança fosse entregue com, ao menos, um manual simples: não use água muito quente, não use água muito fria, não passe a ferro, não chacoalhe, não belisque, não puxe as orelhas, cabelos nem braços, não humilhe. Uma criança deve ser educada. Com afeto.

Lidia Weber, professora da Universidade Federal do Paraná, é pós-doutora em Família e Desenvolvimento Humano. Autora de diversos livros, entre eles Eduque com carinho (Juruá). Coordena o Núcleo de Análise do Comportamento que oferece cursos gratuitos para pais www.nac.ufpr.br