A partir de Crime e Castigo é possível discutir muitos dilemas da humanidade. O livro permite extrair reflexões sobre temas como consciência, moral, impulsos e desigualdade social. Publicado em 1866, o romance permanece atual, como denota um dos questionamentos centrais da obra de Fiódor Dostoiévski: o que nos impede de não agir de maneira individualista?
Para enfrentar a Covid-19, medidas extremas foram tomadas no mundo todo. Em locais tão diversos como Nova York, Dubai, Nova Délhi e Rio de Janeiro, foram estabelecidas multas pela falta de uso de máscaras ou outras práticas de cuidado. Na capital carioca, até a tradicional quadra da Mangueira foi fechada pelo Corpo de Bombeiros.
De modo similar, em Curitiba, foi recentemente aprovado projeto de lei que fixa multas para pessoas e estabelecimentos comerciais que não cumprirem normas de comportamento em relação à pandemia. As punições são relevantes, na medida em que não se tem observado uma adesão espontânea às orientações sanitárias. Embora seja certo que cada um, a seu modo, considera-se ético, basta um passeio pelo Parque Barigui para ver que muitas máscaras terminam por cair.
O projeto de lei aprovado na capital paranaense define punições para quem deixar de usar máscara de proteção, participar de aglomerações ou deixar de cumprir o isolamento social. As empresas podem ser multadas por não oferecer álcool em gel 70%, deixar de oferecer máscaras adequadas aos funcionários, de controlar o uso de máscaras ou, ainda, por não assegurar o distanciamento de 1,5 metro, inclusive fora do estabelecimento.
Não resta dúvida acerca da importância dos protocolos sanitários; todavia, é preciso notar que as sanções impostas pela prefeitura colocam em tensão o individual e o coletivo. O uso de máscaras tornou-se um catalisador de conflitos, a começar porque há um grupo de pessoas que, por teimosia ou convicção, insiste em não cumprir as orientações e termina por expor os demais.
Sob outro olhar, as providências da prefeitura impõem uma delicada transferência de responsabilidades, tendo em conta que não é nada simples a fiscalização, pelas empresas, da conduta dos consumidores. Em contraste, as punições incluem pesadas multas, que podem atingir até R$ 150 mil, além da possibilidade de suspensão das atividades comerciais ou mesmo a cassação de alvará de funcionamento.
É certo que os castigos impostos são pesados; todavia, constituem uma opção menos dura que o fechamento dos estabelecimentos que já sofrem profunda queda do consumo por decorrência da pandemia. A argumentação dos empresários de que seria necessário primeiro uma advertência antes de punir é compreensível; no entanto, mitiga significativamente a efetividade das medidas.
Por outro lado, é preciso ressalvar que a punição das empresas por não ser observado o distanciamento social nas filas de consumidores que estão na rua pode se revelar exagerada, sobretudo para estabelecimentos de menor porte, em que trabalham apenas um ou dois funcionários. Uma vez que que tenham sido adotados cuidados como marcar os espaços para aguardar na fila e sinalizadas com destaque as regras para cumprir o distanciamento, será preciso o filtro da razoabilidade para discernir entre diligência e conivência.
No dia a dia, a falta da máscara revela muito mais que o rosto. Tal como em Crime e Castigo, conhecemos as circunstâncias que causam a morte e precisamos agir de modo adequado. “Presos” em nossas casas, não podemos ficar presos em nós mesmos; precisamos sufocar a indiferença com a solidariedade.
O momento é de angústia, medo, mas também de refletir sobre o que se espera de cada um de nós. Em tempos de distanciamento, devemos permanecer juntos em nossos objetivos comuns e, nesse contexto, são necessários mecanismos de punição que reforcem um agir ético e voltado ao coletivo. Afinal, a conduta de cada um espirra nos demais.
Gabriel Schulman, advogado, doutor em Direito e especialista em Direito da Medicina, é professor da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.
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