| Foto: /Pixabay

Toninho, típico morador de Verdes Águas, almoçava tranquilamente com sua família, seguindo o ritual dos finais de semana. A mesa da família Braga era composta pelo trivial para qualquer refeição, ou seja, copos, talheres, pratos e celulares, de modo que cada um pudesse – de tempos em tempos – visualizar as mensagens nas redes sociais.

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Durante o almoço, Rita, a esposa de Toninho, começou a descrever a beleza de uma praia italiana que passara na televisão. Pouco depois, Chico, o filho adolescente, falava da necessidade de um novo tênis para suas corridas. Tão logo acabou o almoço, Toninho pegou seu celular (desbloqueado pelo reconhecimento de sua íris) e – sem espanto – observou a imperdível oferta de passagens aéreas para a Costa Amalfitana que piscava na tela, enquanto em uma das redes sociais surgia um “mega” desconto para a compra do tênis que seu filho queria. Tudo isso sem que ele precisasse pesquisar na internet.

Algum espanto? Nenhum. O computador de Toninho está cheio de cookies, aqueles arquivos que armazenam temporariamente o que ele visita na rede, guardando endereços de e-mail, as preferências de pesquisa no Google e muito mais. A introdução do smartphone na vida de Toninho também trouxe novidades que logo foram naturalizadas, em busca de suas informações pessoais, seus gostos e interesses. Hoje, as empresas que dominam esse ramo da inteligência artificial utilizam aplicativos que acessam o microfone e a câmera do celular, fazendo com que as conversas possam ser ouvidas, decodificadas e traduzidas em oferta de consumo aos usuários.

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A China tem sido acusada de utilizar o sistema para monitorar dissidentes políticos, artistas e opositores ao seu regime

Talvez por isso, Toninho reagiu tão bem as notícias da última semana sobre a caravana do PSL e do DEM que foi à China para conhecer o sistema e a tecnologia de reconhecimento facial em locais públicos. Os deputados federais e senadores pretendem apresentar no início do ano legislativo um projeto de lei que defina a obrigação da implantação dessa tecnologia com o intuito de auxiliar as forças de segurança pública no combate ao crime e captura de suspeitos ou foragidos.

Mas, afinal de contas, todo um aparato que consiga reconhecer criminosos vai diminuir os crimes e a violência, certo? Si, pero no mucho. Primeiro é importante compreender que sistemas de controle social existem em qualquer sociabilidade e podem servir para estabelecer certas regras de conduta social. Em outras palavras, procuram sinalizar aos indivíduos e aos grupos, quais são os padrões de comportamento esperado, utilizando alguns instrumentos, instituições e símbolos para “relembrar” a todos quais são esses comportamentos esperados. Isso pode ser visto no “não matarás”, numa placa de trânsito que define a velocidade máxima da via, ou na vigilância da polícia, mas também estão presentes na escola (e sua disciplina), nas leis da República e na própria forma de como a família estabelece e determina os valores e condutas de seus membros.

A proposta dos senadores e deputados é instalar o sistema no Rio de Janeiro, o que parece fazer sentido com o deflagrado e propagandeado problema de segurança pública da capital.

Mas o que é que a China tem a oferecer? Hoje a China tem o maior e mais moderno sistema de vigilância com o uso de reconhecimento facial. Além das 170 milhões de câmeras com essa capacidade, existem outras 400 milhões com instalação prevista. Essas câmeras especiais são utilizadas por policiais (em óculos high-tech) ou instaladas em estações de trem e metrô, aeroportos, vias públicas de grande movimento de pedestres e até em pontos estratégicos de comunidades dominadas por traficantes e milícias.

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O sistema procura fazer o reconhecimento do rosto das pessoas e, a partir disso, associa imediatamente com um conjunto de outras informações registradas, desde o gênero e idade até a associação com o rosto do cidadão a informações como o carro que utiliza, suas rotas mais frequentes, seus parentes e pessoas com quem ele entra em contato, dados do fisco, profissionais e outros.

O que chama a atenção é o fato de que o sistema monitora a todos e, presume-se, a maior parte da população não é criminosa, porém, todos passarão a perceber os efeitos dessa constante vigilância. Uma espécie de mundo distópico Orwelliano no qual todos (pres)sentem a invisível presença do Estado-vigilante. A questão central está na forma como isso será utilizado e na mentalidade dos setores de segurança pública que vão conduzi-lo. Afinal, todo o aparato é apenas um instrumento.

Vale lembrar que a China tem sido acusada de utilizar o sistema para monitorar dissidentes políticos, artistas e opositores ao seu regime, além de um frágil sistema de proteção de direitos de privacidade e tribunais criticáveis por sua dependência.

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Por fim, voltando ao ponto: funcionará no Brasil? Simplesmente não. Ainda que “especialistas” possam argumentar pela capacidade de controle e vigilância que poderiam realizar tais artefatos, é basilar reconhecer que o sistema não evitará os crimes. Qualquer cidade brasileira possui um número mínimo de câmeras de segurança e elas não coíbem as práticas criminosas, tampouco os crimes que envolvem violência direta. Portanto, a efetividade desse artefato está mais para o campo da propaganda política, além do que, o custo estimado não foi divulgado até o momento, o que pode ser preocupante para um orçamento já esfarelado.

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Mais que isso, é relevante compreender que as concepções de justiça criminal e controle sobre o crime e a violência estão em transformação, e são dependentes das mudanças que a organização social produz. Deste modo, o posicionamento conservador (supostamente liberal) das políticas públicas tende a direcionar propostas criminológicas neoconservadoras e uma política criminal de caráter retribucionista e carcerário voltado a gestão dos indesejáveis.

Essa onda punitivista e de vigilância absoluta procura esconder os flagrantes problemas estruturantes da sociedade em torno da precariedade do trabalho, da previdência e do mercado que ocorrem nas últimas décadas. O desejo por segurança, por ordem e controle já se evidencia como insuficiente e corrosivo, tendendo a proporcionar controle dos espaços e controles gerenciais sobre massas de desempregados, ocasionando a fragilidade da liberdade e da democracia.

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Portanto, há que se fazer uma escolha entre um discurso de segurança baseado em controle social e vigilância policial ou pela promoção de direitos de cidadania que se alinhem com uma proposição democrática no longo prazo.

Alexandre Nicoletti Hedlund, advogado e doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento, é professor de Direito Penal e coordenador adjunto do curso de Direito da Universidade Positivo (Unidade Santos Andrade) e coordenador adjunto da Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Positivo.