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“Cada poça dessa rua tem um pouco de minhas lágrimas”, dizia a canção emotiva que meus amigos cantavam em nossa adolescência. Vi as ruas da minha cidade, da cidade dos meus amigos e familiares completamente devastada. Não é preciso descrever as cenas, pois elas estão sendo amplamente registradas pelos celulares e câmeras desde o início. Nós todos vimos o que nós todos vimos.
Mas há algo que nós ainda não vimos. A água turva dificulta que vejamos nossa catástrofe por inteiro. Ainda há muita coisa submersa que nos impede de medir a real gravidade da situação. Mas, conforme a água for baixando, a realidade há de surgir. E, perdoem a frieza da minha esperança, mas há aqui um motivo de felicidade.
A tragédia não prova nossa monstruosidade, mas atesta a realidade do que existe no coração do homem: o bem ou o mal.
Devemos franzir o cenho, fechar os punhos, cerrar a mandíbula e encarar essa tragédia com o máximo grau de visão sobrenatural possível. O que foi dado ao nosso povo é uma cruz que não imaginávamos que fosse possível suportar. Ninguém queria estar passando por nada disso. Mas esse é o paradoxo da cruz: quando ela surge, a verdade se instala. É nos momentos de maior dificuldade que a essência das coisas se revela, a caridade assume seus traços mais perfeitos e vemos a luz e a força que existem escondidas por Deus no coração do homem. Porque fomos espremidos, descobrimos o que havia dentro do nosso coração.
Alguns poucos fizeram o mal. Mas tantos (a devastadora maioria!) estão fazendo o bem em um grau que jamais vimos. A corrente de solidariedade e de amor que tem se perpetuado em cada gesto de ajuda, em cada dinheiro doado, em cada garrafa d'água compartilhada, em cada marmita requentada, em cada hora de sono subtraída, em cada motor de jet ski consertado etc. Olhe para sua vida e para sua história. Quando testemunhamos uma ação tão heróica assim? Eu nunca vi, e aposto que você também não.
O que é isso senão Deus revelando que podemos mais? Podemos mais! Sofremos muito e seguiremos sofrendo. Mas não é esse justamente um sinal da nossa capacidade de suportar e, portanto, da nossa força? Vence quem dura mais. E nós iremos durar — com a graça de Deus, iremos durar para sempre, pois nossos atos se repercutem na eternidade.
Conta-se que, em uma discussão com o psicólogo Viktor Frankl (que sobreviveu aos campos de concentração), Sigmund Freud defendia que se retirássemos todo o suporte social do homem (sua casa, seu status, sua família etc.), sobraria apenas um animal como um porco ou qualquer outro bicho. Frankl contrapôs, dizendo que essa crença só pode existir para quem vive no luxo e se dá o direito de imaginar o que quiser. Afinal, tendo ele enfrentando a dureza das celas e a fome dos abrigos, testemunhou os maiores atos de heroísmo e santidade que o homem já viu. A tragédia não prova nossa monstruosidade, mas atesta a realidade do que existe no coração do homem: o bem ou o mal.
É nisso que cria o santo Josemaria Escrivá quando escreveu: “O céu e a terra não se unem lá longe, sobre a linha do horizonte, mas no coração dos filhos de Deus, que se comprometem na incomparável audácia de procurar Cristo presente nas realidades terrenas.” Que essa profecia se cumpra em nosso povo. Que vejamos a Cristo nos olhos uns dos outros, a partir da nossa tragédia. Ecce nova facio omnia. Ganhamos a oportunidade de nos reconstruir.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos