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Para além do debate sobre as causas de seu advento, a cultura “pós-verdadeira” parece ser o termo para o qual convergem fenômenos tão díspares quanto o negacionismo científico, a distorção ideológica, a política da emoção, a ascensão do populismo, a difusão das fake news e o denominador comum disso tudo repousa em dois valores específicos: o relativismo e a indiferença pública à verdade.
A maioria dos estudiosos da cultura “pós-verdadeira” concorda que ela anda a devastar a coexistência política. Mas, apesar disso, esta inferência não se refere à propagação repentina de mentiras ou às estratégias sutis de manipulação, em relação às quais temos uma longa experiência, mas a um certo ofuscamento ideológico, em que o dado emocional prevalece e que resulta, em princípio, imune à refutação racional.
Na linha de sua definição, a pós-verdade não implica numa impugnação do óbvio, mas numa “descrição de nossa cultura política, em que os fatos objetivos têm menos importância na formação da opinião ou do debate público do que os sentimentos ou as convicções pessoais”. Dito de outra forma, a pós-verdade não questiona a relevância dos fatos, mas os subordina à inclinação política e sua expressão emocional.
A cultura “pós-verdadeira” só aparece naqueles campos em que a verdade faz fronteira ou esbarra com a ideologia – campo, por excelência, da práxis política – e, como efeito, acaba rendendo-se a ela. Ela não afeta aquilo que Leibniz chamou de “verdades da razão” ou mesmo verdades de fato não relacionadas às questões tipicamente opináveis daquela práxis.
A cultura “pós-verdadeira” está, acima de tudo, relacionada àquelas verdades provisórias, contingentes e frágeis da politicidade prática e irrompe quando a busca cooperativa pela verdade vacila e o dado comum recua diante daquilo que nos separa. Seja sobre mudança climática, jihadismo, imigração, cloroquina ou vacina, a cultura “pós-verdadeira” descreve o esforço para distorcer os fatos e moldá-los às pré-compreensões ou preconceitos do cidadão no interior da arena do debate político.
Em todo caso, o debate não parece ser entre aqueles que defendem os benefícios de nossa era “pós-verdadeira” e aqueles que a julgam nociva, mas entre aqueles que entendem que se trata de um fenômeno incomum e aqueles que o consideram apenas outra forma – mais sofisticada – de manipulação política.
Por outro lado, questionar a verdade não parece ser algo muito novo. Lembremo-nos das disputas entre Sócrates e os sofistas em Atenas e, por mais paradoxal que pareça, a cultura “pós-verdadeira” não demostra a crise da verdade, mas sim o desejo de monopolizá-la do ponto de vista ideológico, pois quem interpreta, ainda que torturando, um rol de fatos em apoio a suas teses, em vez de minar a verdade, pressupõe-na como valor intrínseco para uma sadia convivência comunitária.
A cultura “pós-verdadeira” está longe de ser útil para as mentiras políticas de antigamente, assim como para a persuasão publicitária ou mesmo o uso inteligente da ironia, recursos habilmente usados há muito tempo para minar o poder, porque ela caracteriza-se, sobretudo, por sua simplicidade e rusticidade.
Poderíamos dizer que qualquer asserção desta cultura é uma espécie de mentira de baixo custo, que fabrica e anula o real, não para convencer um público incrédulo, mas para exacerbar a adesão incondicional do público convertido.
Ao contrário da mais sofisticada falsidade, ela, singelamente, interpreta, seleciona e até cria os fatos a partir de preconceitos ou pré-compreensões, sabendo que, em qualquer caso, o ônus será módico, na medida em que dificilmente alguém exigirá a retratação daquele que mente a baixo custo, porque tal mentira é uma falsidade tão tosca que nunca alguém se dará ao trabalho de refutá-la.
Se a cultura “pós-verdadeira” desvia dos fatos e das razões, qual é, em última análise, seu fundamento? É a emoção. Esta nova tendência cultural não questiona, como, às vezes, se pensa, apenas a relevância dos fatos, mas os subordina à inclinação política e à expressão emocional.
Desde estas perspectivas, não há dúvida de que todo tema público guarda relação com a progressiva “psicologização” da verdade e com a ideia difundida de que os juízos do ser humano sobre o real são infundados. Dito de outra maneira, a verdade desloca-se do juízo racional e se torna uma disposição psíquica.
Assim, a cultura “pós-verdadeira” é uma cultura em que conta mais nossa atitude para com a verdade do que a própria verdade. Com a devida licença por parte do leitor, se esse artigo fosse um paper acadêmico, poderíamos afirmar que se trata de uma nova pretensão paradigmatizante do conhecimento da realidade, fundada na tentativa de colonização da epistemologia gnoseológica pelo emotivismo ético. Mas fiquemos por aqui.
Ao postergar o valor único da dimensão fática, a sociedade atual torna-se a legítima herdeira do vaticínio de Nietzsche, segundo o qual não há verdades, mas apenas interpretações. Ao enfatizar a dimensão emocional, o argumento racional recua no debate público. O apelo ao visceral, ao instintivo, ao irracional, à autenticidade e ao coração ocupa o lugar que antes estava reservado ao rigor da lógica discursiva. O discurso da cultura “pós-verdadeira” não se destina a ganhar novos adeptos, como a propaganda clássica, mas a apodrecer ainda mais a identidade dos fanáticos de plantão.
Sabemos que a filosofia contemporânea – Foucault, Derrida e Lyotard, por exemplo – abriu o caminho para a cultura “pós-verdadeira” se estabelecer. Aqueles que flertaram com tais pensadores transformaram a desconfiança na principal atitude cívica, semeando o corpo político com suspeitas e suspeitas de classe.
A cautela perante o poder constitui um saudável exercício cívico, tal como a crítica, mas a absolutização da suspeita, como se dá na cultura “pós-verdadeira”, corre o risco de transformar o concidadão ou o governante num potencial inimigo. Some-se a isso que o homem “pós-verdadeiro” não se esquiva dos fatos, porque ele sempre tem “fatos alternativos” à sua disposição. E, se os fatos não se reconciliam com o que ele pensa, “pior para os fatos”, imitando Hegel.
É preciso uma fé cega para acreditar que a cultura “pós-verdadeira” possa contribuir para a configuração de contextos sociais mais tolerantes, livres ou pacíficos. É mais fácil que tais contextos entrem em regime de curto-circuito na intersubjetividade comunitária, intensifiquem o confronto e acentuem a polarização ideológica, porque, como recorda Arendt, se renunciarmos à verdade, só restarão os sofismas.
Ao cabo, a cultura “pós-verdadeira” tende a romper o vínculo do homem com a realidade das coisas, pondo em perigo a própria noção de racionalidade. Precisamos da verdade não apenas para bem viver, mas também para sobreviver, e isso requer a apreciação de uma realidade independente daquilo que gostaríamos que fosse.
A verdade permite que nos articulemos, nos diferenciemos do que nos rodeia e verifiquemos que não estamos sós no mundo. É o reconhecimento dessa verdade e dessa realidade comum que nos vacina contra as mentiras de baixo (ou alto) custo e contra qualquer forma que a cultura “pós-verdadeira” venha a assumir, oferecendo-nos, ao mesmo tempo, um lugar de encontro e confluência com os outros.
André Gonçalves Fernandes, post Ph.D., é juiz de Direito, professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).