A universidade, de uma maneira mais sonora nos países anglo-saxões, passa por um de seus momentos mais frágeis nas últimas décadas. A liberdade de expressão – essencial para, segundo Pieper, um ensino aberto à totalidade do real em suas conexões globais – anda bem raquítica, porque foi encurralada pelo politicamente correto e pela primazia dos sentimentos sobre os fatos.
A universidade tornou-se um câmpus da irracionalidade e, como efeito, assistimos ao processo de infantilização das jovens mentes. Cada vez mais, o léxico do progressismo cultural pós-moderno ganha terreno: espaços seguros, microagressões, preconceitos inconscientes, pronomes escolhidos, apropriação cultural indébita, interseccionalidade, opressão sistêmica e assim por diante.
A criatividade semântica dessas expressões costuma andar de mãos dadas com a nulidade epistemológica. Um conjunto de conceitos representativos de uma dita resistência cultural e neologismos orwellianos evidenciam uma tradução sintomática: o importante é garantir o conforto moral do aluno pleno de suscetibilidade epidérmica como o bem maior da universidade.
A universidade não mais educa, isto é, etimologicamente, não conduz mais para fora. Em vez de preparar o indivíduo para o mundo, a universidade resguarda seu pequeno mundo fantástico. Assim como uma babá trata um recém-nascido. Seria cômico se não fosse trágico.
Por suposto, o conhecimento e a formação ainda são relevantes, mas, no novo ecossistema universitário, na dúvida, tais dimensões devem ser sacrificadas em prol do bem-estar emocional do aluno, de sorte que os fatos inconvenientes devem ser substituídos pelo wishful thinking e, por sua vez, a verdade desconfortável para o aluno deve ser galvanizada pela justiça social desejada. As universidades deveriam subir a novos patamares de delírio e distribuir também fraldas e mamadeiras como bônus. Para captar clientela.
O que explica esse “salto qualitativo”? Desde a conversão gradual do aluno em cliente-bebê até o medo aos moedores de carne que são as redes sociais – passando pelo (na expressão de Darlymple) “sentimentalismo tóxico” de nossa época até a escassa “resiliência milenial”, sem prejuízo da retroalimentação ideológica incessante entre as cadeiras de Humanas e os formadores de opinião pública, ambos movidos por sua ânsia de se libertar da “tradição opressora” pelo impulso cego da política de identidade, com sua tendência obsessiva de substituir a individualidade pelo coletivismo –, o inferno universitário foi sendo pavimentado por boas intenções, mas a bola de neve, há algum tempo, já era irrefreável. O histérico, o oportunista, o ativista, o egoico (na descrição de Voegelin) e o intransigente encontraram um enorme terreno fértil para silenciar tudo aquilo que lhes desagradava.
Tais ingredientes criaram as explosões virais de intolerância a que assistimos no mundo universitário. É só abrir o YouTube para ver como, com paciência franciscana, um professor dissidente discute com hordas de estudantes indignados com ele, por causa do teor de seu último paper: o professor dissidente recebe insultos e gritos por sua “insensibilidade comunitária” ou seu “racismo inconsciente” e por incentivar um ambiente social em que a “violência” contra as minorias possa ocorrer.
Esses vídeos são a ponta do iceberg, mas são essenciais para entender a maré de intransigência que invadiu tantos ambientes da graduação superior. Uma maré que ameaça os fundamentos de qualquer democracia – liberdade de pensamento e de expressão – e que simplesmente compõe a ponta de lança de um arsenal mais amplo: correção política e linchamento de reputações daqueles docentes que expressam publicamente ideias que se afastam da aprovação do establishment pensante, porque, exceto em pouquíssimas questões, o consenso público – isto é, a aquiescência entre a mídia e as elites intelectuais que definem a agenda social – das chamadas guerras culturais oscila entre o progressismo liberal e a extrema-esquerda.
Ficamos espantados com a politização dos fatos e o desprezo pelo método científico sob o álibi de libertação ideológica em muitas áreas: sexo, família e educação são bons exemplos. O que há de novo, então, nessa nova fúria de correção política que permeia os câmpi? Em primeiro lugar, o que era, décadas atrás, uma tendência à esquerda nas Ciências Humanas e Sociais tornou-se um domínio quase absoluto. Em segundo lugar, a caixa de ressonância que as redes sociais permitiram criar, hoje, são capazes de mobilizar, sitiar e assediar como nunca antes. E, finalmente, a recorrência, como método de ação, de ataques, violações e insultos públicos.
Como pano de fundo de todas essas novidades, existe a equalização entre palavras e violência. Esse é o quid da questão, porque habilita o salto lógico que legitima as centenas de atos de coerção física e de coação moral. É o raciocínio do orgulhoso “antifa”, lastreado na dialética da autodefesa: silenciar o suposto intolerante não é apenas um ato de justiça, mas um dever moral para impedir a violência que seria desencadeada pelas palavras que emergem de seus “discursos de ódio”.
Quando achamos que o fundo do poço chegou, então, surge outro salto irresistível, no melhor estilo Carroll, o salto hermenêutico: o ódio é o que eu digo que é ódio. Dito de outra forma, é simplesmente aquilo que não se encaixa no “meu modo de pensar”. A tolerância – o afã de respeito pelas idéias, crenças ou práticas dos outros quando são diferentes ou contrárias às suas – é substituída pelo dogma.
Se as ideias do professor ou do conferencista desafiarem os mandamentos de nossos bravos guerreiros da justiça social, elas serão automaticamente rotuladas como tradicionalistas, racistas e homofóbicas, a fim de preservar a pureza intelectual do inocente ouvinte. Discutir essas ideias pouco qualificadas é, no fundo, legitimá-las e, logo, elas devem ser retiradas de circulação o mais rápido possível, como uma medida de assepsia do pensamento.
Assim, evita-se uma “causalidade” entre um livro infantil clássico e o racismo, entre a gramática e o desprezo sexual, entre a oposição à transexualidade infantil e o suicídio de um adolescente com disforia de gênero. O canal da diversidade teórico-especulativa seca, as tropas de ativistas patrulham o discurso, as palavras matam e as pessoas são meros entes que, parafraseando Woody Allen, reservam voos para a Polônia depois de ouvir Siegfried de Wagner.
Nesse ambiente intimidativo, a universidade resta inútil numa de suas principais missões: a de fazer as pessoas pensarem. As acusações de racista, transfóbico e tantas outras, tanto mais exóticas quanto mais acéfalas, são formas de silenciar o discurso sem prestar atenção a nenhum argumento e, assim, expulsar o dissidente das esferas acadêmica e social.
Por isso, não estranhemos que muitos pensadores resolvam se “justapor” ao mainstream da cultura do cancelamento, porque não querem parar numa espécie de Gulag existencial e, certamente, perder o assento na bancada do telejornal de horário nobre ou na direção da instituição de ensino superior.
Se é problemático que a expressão “cultura do cancelamento” seja tão frágil na opinião pública, é mais trágico ainda que afete a universidade. Outro dia desses, ouvi falar, na aula de um ministro do STF, nosso mais togado censor iluminista, ser preciso cancelar Aristóteles, porque ele defendia a escravidão. Dá vontade de começar a réplica com um longo bocejo.
A mais óbvia razão é que a faculdade deve ser um lugar para desafiar ideias e argumentos. O aluno matricula-se para aprender e não para confirmar tudo o que sabe. Dialogar com textos, filmes, experimentos, professores e outros alunos que proporcionam outra visão do mundo é essencial. Não se trata de relativismo, mas apenas de aceitação da complexidade, porque o caminho do conhecimento, sobretudo em Humanas, tem sido cada vez mais complexo.
Mediante esse processo hermenêutico, o aluno cresce intelectualmente e amplia sua capacidade crítica. Esse trabalho, inevitavelmente, envolve confrontar ideias que, em muitas ocasiões, podem parecer perigosas, polêmicas ou desconfortáveis.
Como efeito dessa autoestultificação universitária, de acordo com Taylor, enraizada no impulso do politicamente correto, na hipersensibilidade estudantil, no apedrejamento midiático e na legislação de cotas raciais, a liberdade universitária é profundamente afetada e gera uma espiral de silêncio em acadêmicos e pensadores que fogem do caminho fácil da adesão intelectual à cultura do cancelamento, sob o risco de serem alvos da ira de tuiteiros enfurecidos e de jornalistas-ativistas.
Recordo-me, agora, de umas palavras de John Stuart Mill em On Liberty: “Quem conhece apenas um aspecto da questão não sabe muito sobre isso. Suas razões podem ser boas e pode até não haver alguém capaz de refutá-las. Mas se ele é igualmente incapaz de refutar os motivos da parte contrária, ele não tem motivos para preferir uma ou outra opinião”.
Por isso, além do evidente aroma totalitário da cultura do cancelamento, escandalizar-se com aquilo que se ouve numa sala de aula ou num congresso acadêmico supõe uma atitude radicalmente antiuniversitária. A razão é muito singela: as más ideias não devem ser silenciadas, mas refutadas, e as piores, como a cultura do cancelamento, refutadas por completo.
O que faz com que a universidade seja uma universidade não é a ciência, mas a resoluta orientação do pensamento para o universum, para a unidade do conjunto do real, ou seja, um decidido e persistente esforço de abertura para o todo que, desde sempre, tem sido designado e entendido como conhecer.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).
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