| Foto: Marcos Tavares/Thapcom
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Recentemente, depois da divulgação dos números da segurança pública pelo governo federal, assisti a um debate sobre a “cultura do encarceramento”, composto por um sociólogo, dois militantes esquerdistas, um professor universitário engajado, dois políticos jacobinos e um ator global. Como senti falta de um integrante da classe jurídica, que costuma andar com os pés da realidade das coisas, o resultado não poderia ter sido outro: um mundo de sonhos, alimentado por filosofias românticas e vagas e recheado por muita narrativa bem atraente, a captar somente os ouvidos e a razão dos telespectadores incautos ou desavisados.

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O debate girou em torno daquelas mantras já desgastados pela mídia que comprou essa narrativa politicamente correta: “encarceramento excessivo”, “prisão preventiva desnecessária”, “persecução penal racista”, “punitivismo fascista”, entre tantas outras expressões tanto mais ocas quanto proselitistas.

Esse rol de expressões tem um forte apelo hermenêutico e parte de uma premissa antropológica bem clara. O preso, provisório ou condenado, seria um indivíduo que expia uma culpa que não lhe pertence, mas deve ser atribuída à sociedade. Dito de outra maneira, se um indivíduo rouba ou mata, a responsabilidade não seria dele, mas da sociedade que, de alguma forma, omitiu-se no atendimento de suas necessidades básicas existenciais. Então, como efeito, ele poderia avocar uma espécie de “alvará para delinquir” e o resto seria apenas uma questão de escolha da vítima.

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O erro dessa visão está no determinismo que lhe serve de suporte intelectual. Na verdade, a carência material pode predispor alguém para o cometimento de um crime, mas jamais condicioná-lo, porque sempre há um momento em que o sujeito decide livremente pelo “sim” ou pelo “não”, o que se dá também quando sua consciência prevê o resultado e sua vontade nega um agir, contudo, mesmo assim, ele assume o risco pelo advento do mesmo resultado.

No entanto, voltemos ao debate. De todos aqueles mantras surrados, o tal “encarceramento excessivo” realmente ganhou destaque. Aqui, convém fazer alguns esclarecimentos acerca dessa inverdade que, de tanto repetida, parece ter se tornado um dado real e sincero. Antes, porém, recordemos ser o Brasil o país do “homicídio excessivo”.

Matou-se violentamente, nos últimos tempos, em torno de 60 mil indivíduos ao ano e somente 8% dessa estatística é apurada pela autoridade policial. Em miúdos, existem 55 mil homicídios cujos autores jamais serão identificados e mesmo encarcerados. Logo, como consequência, o Brasil é também o “país da impunidade”.

O mantra do “encarceramento excessivo” significa que se prende mais do que se deveria? Não necessariamente. Superlotação de presídio não é estrita decorrência de uma política de “encarceramento excessivo”. Trata-se, retoricamente, de uma falácia dedutiva de uma causa falsa, mais conhecida como post hoc ergo propter hoc: todo antecedente é causa do consequente.

Superlotação de presídio pode ter várias causas. Em nossa realidade, a omissão dos governantes na expansão do sistema penitenciário tem um peso específico bastante ponderável nessa equação, pois sabemos que construir presídio não dá voto. Se existissem mais vagas, muitos presídios não seriam depósitos de pessoas.

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E, considerando que, por aqui, assassina-se mais ao ano do que a última guerra civil na Síria, o número atual de vagas em presídios só pode ser mesmo insuficiente. Não é porque uma geladeira está cheia de bebida que há bebida demais para a festa. A geladeira pode ser um frigobar de república estudantil e o número de convidados corresponder a todos os moradores do condomínio.

Alguém poderia arguir que a realidade penitenciária nacional já nos premia na quarta posição em números absolutos de população carcerária, donde decorre, de novo, o argumento do tal encarceramento excessivo. Aqui, novamente, incide a mesma falácia anterior, porque o Brasil, por ter a quinta maior população do mundo, ostenta uma população carcerária compatível com esse patamar demográfico.

No ranking que interessa – o do Institute for Criminal Policy Research (ICPR), e não naquele dos números que, durante anos, foram torturados pelos ideólogos do Infopen –, o Brasil aparece na 32.ª posição, com 307 presos para cada 100 mil habitantes. É excessivo? Seguramente, não. Curioso notar que, nesse mesmo ranking, países menos populosos que o Brasil, como Cuba e Venezuela, estão bem à nossa frente no quesito “encarceramento excessivo”.

No Brasil, não vivemos na cultura do encarceramento. Vivemos na cultura da impunidade. Enquanto for assim, podemos afirmar que o Brasil prende de menos. E, caro leitor, caso ainda discorde, sugiro que, efetivamente, ponham os encarcerados – essas vítimas do punitivismo estatal – para trabalhar: farão muito mais para a sociedade do que sociólogos, militantes e professores universitários engajados, além de políticos jacobinos e atores globais, que os querem todos bem soltos por aí, baseados na narrativa falaciosa da cultura do encarceramento.

André Gonçalves Fernandes, post-Ph.D., é juiz de execução criminal, professor de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, e pesquisador da Unicamp.

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