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Investimentos estrangeiros em terras no Brasil, atualmente, com frequência recorrem a contratos de gaveta
Imagem ilustrativa.| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

A ciência possui várias faces que exprimem diferentes lados da curiosidade humana. Isso é evidente na quantidade de material sobre saúde e tecnologia que é bombardeada nas redes sociais diariamente. Médicos, dentistas e enfermeiros dão dicas de como viver melhor.  Cientistas da computação e profissionais do ramo de TI testam os novos “brinquedos” das gigantes de telefonia e informática. A influência e o mercado são fantásticos, o retorno é tão alto quanto os likes e seguidores que conseguem.

Apesar disso, poucos se interessam por uma parte da ciência que possibilitou todo esse avanço, a agricultura. Para não parecer que eu esteja puxando brasa à minha sardinha, já que sou engenheiro agrônomo, preciso contar-lhes a história de como os seres humanos criaram o que chamamos hoje de “tempo livre”, agente principal do surgimento de quase toda a tecnologia.

Nos primeiros grupamentos humanos, o tempo era gasto quase que inteiramente na busca pelos recursos primordiais: água e alimento.

Nos primeiros grupamentos humanos, o tempo era gasto quase que inteiramente na busca pelos recursos primordiais: água e alimento. As primeiras atividades humanas para a obtenção de alimento envolviam a caça e a coleta, atividades de baixa produtividade que exigiam muito tempo para pouco retorno. Entretanto, já nessa época, o homem começou a facilitar as coisas para o início da agricultura, preocupando-se com as ferramentas de trabalho. Começaram talhando seixos de rios; depois foram aperfeiçoando as técnicas, poliam as ferramentas e faziam facas e lanças. Cada melhoria possibilitava uma melhor interação entre o homem, as plantas e os animais. Nesse meio tempo, com conhecimento aplicado e ferramentas de pedra, acredita-se que surgiu a agricultura.

O ser humano, dotado de uma racionalização ausente nos animais, começou a estudar o ciclo da vida. Percebeu que, como eles, as plantas também nasciam, cresciam, multiplicavam-se e morriam. Ademais, podiam interferir nesse ciclo, retirar as plantas que não queriam e fazer nascer as que davam alimento.

Podemos nos divertir com nossos smartphones, tablets e outros brinquedos com nomes estrangeiros sem nos preocupar com o que a terra produzirá amanhã.

Acredita-se que as primeiras produções eram pequenas hortas-pomares, feitas perto dos locais de descanso. Essas hortas-pomares podiam ser compostas de diversos cultivos de ciclo curto, como milho, batata-doce, amendoim e tomate; ou cultivos deciclo longo como banana, cana-de-açúcar, fruta pão, abacateiro e mangueira. A diversidade de culturas era tão grande quanto a variedade de plantas disponíveis no ambiente.

Um problema relacionado a tais hortas era a impossibilidade de sedentarização, pois não proviam alimento suficiente para que o ser humano se estabelecesse em um único local, visto que a produção ocorria em pequenos espaços chamados “clareiras” (espaço na floresta onde as árvores rareiam ou faltam por completo). Havia a necessidade de um tipo melhor de agricultura, um tipo que provesse alimento suficiente o ano todo.

Tudo isso só é possível graças à uma pequena porcentagem de pessoas que escolheram se ocupar com a produção do nosso alimento.

Assim nasceu a agricultura de derrubada-queimada, um dos primeiros tipos de agricultura e que ainda é praticada hoje em algumas regiões da África e pelos famosos índios Ianomâmis da Amazônia. A área é desmatada, os ramos são queimados logo antes das chuvas, fornecendo nutrientes pelas cinzas, e então ocorre a semeadura. O mesmo procedimento é executado ano após ano.

Esse tipo de agricultura possibilitava a sedentarização de aproximadamente 10 habitantes por quilômetro quadrado. Apesar da baixa capacidade, já era uma evolução da organização humana em meio às florestas. Quando a população por quilômetro quadrado era extrapolada, o homem voltava à vida nômade e buscava novas áreas para recomeçar o ciclo de derrubada-queimada.

Quanto mais tecnologia, maior a possibilidade de sedentarização e menor a necessidade de agricultores. O mesmo ocorreu com a pecuária, a criação de animais. O Egito, por exemplo, foi um país que foi muito ajudado por sua geografia. A disponibilidade de água e a sazonalidade de terras férteis possibilitou o avanço de várias áreas da ciência. Pessoas podiam finalmente pensar em outra coisa além da obtenção de alimento.

Aqui cabe um parêntese, não estou entrando nos méritos morais de como essas civilizações utilizavam seus recursos. A tenebrosa história do estudo da anatomia humana na sociedade egípcia está de testemunha que muitas vezes o "tempo livre" poderia ser usado de forma melhor. Entretanto, esse "tempo livre" existiu e existe graças à evolução agrícola.

Hoje podemos nos divertir com nossos smartphones, tablets e outros brinquedos com nomes estrangeiros sem nos preocupar com o que a terra produzirá amanhã. Podemos nos dar ao luxo de entrar em uma universidade de medicina e estudar para curar doenças complexas sem a preocupação de como produzir nosso arroz e feijão. Tudo isso só é possível graças à uma pequena porcentagem de pessoas que escolheram se ocupar com a produção do nosso alimento.

Victor Hugo Assis Hoff Brait é engenheiro agrônomo.

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