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opinião do dia 2

Cultura versus censura

É preciso ter coragem de dizer claramente sim à educação e à cultura, ao mesmo tempo em que se deve dizer sempre não à censura e a toda espécie de violência

O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que, às diversões e espetáculos públicos, serão estabelecidas recomendações indicativas acerca das respectivas faixas etárias, as quais deverão ter "certificado de classificação". O poder público, por meio do órgão competente, deverá regulamentar as diversões e os espetáculos públicos. E, assim, toda criança, adolescente ou jovem terá acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária. Dessa maneira, contribui não só para o exercício do direito fundamental à cultura, mas também oferece apoio institucional à família para educação, criação e assistência de seus filhos infantes e jovens. A criança, o adolescente e o jovem são sujeitos de direito que possuem a garantia fundamental da prioridade absoluta, cujo objetivo é a formação individual responsável e socialmente consequente. Entretanto, o que não se admite mais é a censura de diversões e espetáculos públicos, ainda que, indiretamente, realizadas por classificações preconceituosas.

O conteúdo cinematográfico veiculado no filme A Serbian Film - Terror Sem Limites retrata cenas de violência a direitos individuais de crianças, adolescentes e jovens. Contudo, não se pode presumir que o propósito de tal retratação artística se constitua num incentivo a práticas abusivas e violentas. Tanto que o filme indica claramente a aversão do protagonista a tais práticas, as quais apenas são admitidas pelos atores que são claramente destacados como "vilões". Na verdade, a mensagem cinematograficamente veiculada dependerá – e muito – da formação educacional e cultural das pessoas, de acordo com a recomendação classificatória da faixa etária, do que tão somente pela encenação (ficção) em si. Pois, diariamente, nos mais importantes meios de comunicação social são veiculadas notícias – e, por vezes, opiniões! – acerca de violações sofridas por crianças, adolescentes e jovens, inclusive, através de relatos pelas próprias vítimas, sem, contudo, causar o menor clamor público ou aversão "moral".

Esses arroubos de pieguice e de demagogia são paradoxalmente contraditórios à realidade brasileira, na qual diuturnamente é possível constatar que inúmeras crianças, adolescentes, jovens, mulheres, idosos, dentre tantas outras "vulnerabilidades", encontram-se abandonados à própria sorte por seus respectivos núcleos familiares, comunitários, e, ainda, lamentavelmente, por diversos órgãos que compõem os poderes públicos. Por isso mesmo, a educação e a cultura deverão ser preservadas, sim, de toda e qualquer espécie de censura ou preconceito.

Não há qualquer utilidade jurídica ou social na censura que possa justificá-la como meio adequado de proteção integral da criança, do adolescente ou do jovem. Senão, muito menos para a preservação de "valores socialmente compartilhados" ao custo do sacrifício de direitos individuais, do pleno exercício da cidadania, e, principalmente, do regime democrático.

Enfim, cabe ao poder público, através de seu órgão competente, emitir o certificado de classificação indicativa da faixa etária para regulamentar a veiculação da obra cinematográfica. Até porque não se constitui a reprodução de tal obra de ficção numa apologia ao crime ou às praticas abusivas e violentas retratadas; sequer, constatação documental de uma dada realidade. Por consequência, as conquistas civilizatórias e humanitárias consolidadas nas liberdades públicas (artística e cultural) serão reafirmadas, ao mesmo tempo em que se negará, por mais esta vez, qualquer valor (jurídico, social ou "moral") à censura (violência) como forma de emancipação subjetiva. É preciso ter coragem de dizer claramente sim à educação e à cultura, ao mesmo tempo em que se deve dizer sempre não à censura e a toda espécie de violência.

Mário Luiz Ramidoff, promotor de Justiça do Paraná, é professor titular de Direito da Criança e do Adolescente no UniCuritiba, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

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