| Foto: Neza Eerin/Free Images

Há coisas ignoradas demais para não serem importantes. Para evitar recordá-las, não raro lançamos mão de mil subterfúgios, do autoengano mais eloquente ao cinismo firme e até inapelável. Explico.

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É sexta-feira, num ônibus. A moça (talvez uns 38 anos, vive com a mãe), atrás de mim, explica a alguém atento: já considerara seriamente a maternidade. “Desisti”, esclarece. Não quer “problemas”.

Vive e não quer problemas. A frase é corrente e, no fundo, verdadeira. Não se pode julgar a moça. Filhos são problemáticos, sim. Minha dificuldade, contudo, é lembrar de algo neste mundo que não o seja, e tudo o que as pessoas precisam, quase sempre, é de um bom problema. Mas absolvê-la ou condená-la não é comigo. O ponto aqui é o desafio que o narcisismo contemporâneo impõe.

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Tento ser refratário a socializações. Como Nelson Rodrigues, nutro larga desconfiança com relação à misericórdia oficial. Veja lá o que mesmo um insuspeito ateu de carreira como Bertrand Russell (o qual, diga-se de passagem, foi responsável por declarações absolutamente escandalosas) foi capaz de reconhecer: a “socialização da reprodução” (a substituição da família pelo aparelho estatal) tanto encorajaria a trivialização do amor sexual quanto implicaria certa fragilização dos demais vínculos pessoais.

Nenhuma sociedade lastreada na pura satisfação dos desejos pode durar

Pode-se objetar que essa transferência de competências da família para o Estado tem resultado na promoção da vida erótica sem entraves (e, portanto, “mais feliz”).

Mas isso em nada é verdadeiro. De dois modos se pode entender o impacto do sex-lib sobre a realidade sexual. A um deles se referiu o mesmo Nelson, ao sugerir que a sexual liberation aniquilará o desejo, pela crise da noção de castidade (de que é sintomático o “desencantamento” da nudez; afinal, banalizar o nu é o contrário de valorizá-lo); ao outro, reporto-me agora: o incentivo ou a “sensibilização” programática contra o “tabu do sexo” leva (como tem feito) a uma escalada de ciúme obsessivo e, à reboque, de aguda violência. O antagonismo entre essas consequências, especialmente caso não sejam sucessivas, denota um quadro de evidente “esquizofrenia afetiva”.

Como a proximidade familiar em geral confere importância às expectativas e ao senso de legado para além das satisfações momentâneas, a nova situação emocional mascara, para falar com Christopher Lasch, um desespero de encontrar a verdadeira intimidade. O desejo deixado a si, isolado, só conhece o momento presente e, apesar de certo nietzscheanismo de cátedra, nenhuma sociedade lastreada na pura satisfação dos desejos pode durar, como bastam dois minutos de observação para que se comprove.

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Nossas convicções: O valor da família

Carlos Alberto Di Franco: Família, aposta decisiva (5 de janeiro de 2015)

Noutras palavras, é na crise do desejo e no colapso das virtudes que o Homo ludens atual encontra sua grande expressão, e o que decorre daí pouco surpreende. Os recentes estudos demográficos não admitem dúvidas: a difusão da contracepção e seu impacto sobre a responsabilidade afetiva nos colocaram na rota do declínio civilizacional (ou do simples predomínio geracional e cultural de populações férteis. Já imaginou o Ocidente tomado pelo Islã?), e as novas tentativas de transcender a natureza humana por intermédio da biotecnologia evidenciam essa direção autodestrutiva.

Os avanços técnico-científicos dos últimos séculos têm-nos dado a oportunidade de um estranho suicídio, em que buscamos na prática o autoaniquilamento sem querermos, de fato, morrer. Assim, seguimos impregnando tudo com sinais de morte. Desfiguramos os rostos; apagamos tudo o que “cheira” à humanidade; mesmo daquela pífia dignidade com que Pascal reveste o nosso divertissement, pouco ou nada se deixa. Tudo em nome da felicidade universal ou até, modestamente, de um mundo mais alegre, sem a presença incômoda dos chatos que insistem em apontar o caminho do abismo como sendo o caminho do abismo.

O homem moderno confundiu um passo à frente com um passo na direção certa

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Driblar esta dificuldade – supondo, em proveito nosso, que todos queiramos escapar ao fatalismo –, novamente, não está no apelo às generalidades, ao coletivismo, e sim no chamamento à responsabilidade pessoal. Com efeito, aquilo que é dever “de todos” dificilmente será interpretado como o dever “de cada um”. E, não sendo necessário ir além do óbvio para concluir como todos sofremos (e particularmente as crianças) com os danos causados à estabilidade familiar, é preciso pagar o preço individualmente: ter e fortalecer a própria família – e, aqui, mais do que com relação a qualquer outro problema social presente, é sem dúvida bem-vinda a contribuição da quantidade em favor da qualidade. Por óbvio, não estou com isso advogando a redução utilitária de seres humanos a números ou colecionáveis, creio ser desnecessário alertar (ou melhor, hoje é preciso alertar, sim).

Um sábio católico norte-americano disse que o homem moderno confundiu um passo à frente com um passo na direção certa.

Enquanto o politicamente correto não decretar o fim do inconveniente moral da sobrevivência humana, o mundo real continuará aguardando o nosso desembarque. Meu respeito às famílias numerosas.

Glaucio Vinícius Alves é mestre em Ética e Filosofia Política.