O recente vazamento de conversas privadas entre membros do Judiciário e Ministério Público reacende uma discussão que muitos simplificam numa única pergunta: os fins justificam os meios? Porém a questão é bem mais profunda, e deve ser discutida no âmbito filosófico que deslinda numa prática social, numa manifestação de um comportamento coletivo.
Explico: o escritor e filósofo italiano Giuseppe Cesare Abba descreve algumas figuras de ética que se apresentam como válidas em nossa sociedade. Ou seja, propõe uma ideia acerca da pergunta fundamental a que a ética deveria dar uma resposta filosófica, sendo que o elemento mais importante dessas figuras é a concepção que cada uma delas tem do sujeito moral. Nesse contexto, a ética pode emergir como um saber ordenado para a produção de uma boa situação (a que for melhor) vital para o indivíduo ou para a coletividade. Ideia defendida por Jeremy Bentham, filósofo e jurista britânico; e John Stuart Mill, também filósofo e economista britânico. Para eles, o bem vem antes do justo; primeiro, determina-se o que é o bem e, depois, o que será considerado justo, o que cada um produz em maior quantidade de bem e menos de mal. Busca-se, então, maximizar o prazer, entendido como a satisfação dos próprios desejos e interesses (lato sensu), sendo sua única preocupação os atos e as normas, não o bem da vida humana considerada como um todo.
Michael Sandel, em sua obra Justiça: o que é fazer a coisa certa, explica que, para os utilitaristas, maximizar a utilidade é a coisa certa a fazer em qualquer situação; afinal, um governo deve buscar maximizar a felicidade da comunidade em geral, sabendo que para Bentham "comunidade" é um corpo fictício formado pela soma dos indivíduos que abrange. Nesse sentido, se a comunidade deseja expurgar a corrupção da sociedade, deve fazer a seguinte pergunta: se somarmos todos os benefícios dessa diretriz e subtrairmos os custos (inclusive a eventual lesão a princípios como o da legalidade e da legitimidade), ela produzirá mais felicidade que uma decisão alternativa?
Precisamos ter maturidade ideológica para defendermos nossas posições de forma clara e aberta
Numa análise rápida das conversas furtadas de seus interlocutores, porém defendidas em seus conteúdos por eles, podemos detectar que a ética utilitarista foi a adotada e, caso a sociedade a valide, nada poderemos fazer a não ser lamentar. Digo isso porque acredito que uma das vulnerabilidades mais flagrantes do utilitarismo é sua falta de respeito aos direitos individuais, pois o que vale é a soma das preferências individuais, podendo, então, justificar circunstancialmente a tortura, a eutanásia e a eugenia, por exemplo.
Entendo que sempre é errado violar direitos humanos, ainda que fosse para atingir a felicidade de uma população; não há como transformar em moeda corrente valores de naturezas distintas, agindo quantitativamente em vez de qualitativamente. Mesmo a versão utilitarista de Mill não consegue me convencer, uma vez que defende que a sociedade executa os próprios mandatos, seguindo o princípio da maximização da utilidade, com nuances mais moralistas.
Acredito muito mais em uma ética centrada na primeira pessoa, subjetiva a ponto de entender o agir humano sob a perspectiva interna do sujeito agente, que considera o bem da vida humana em sua integralidade, admitindo que valores são o fundamento de nossas ações e que abrir mão deles é desfigurar-se como ser humano. Entender que o bem humano existe e é racionalmente conhecível torna muitas vezes árdua a batalha para o conquistar, faz parte de um entendimento profundo da ética das virtudes apresentada inicialmente por Aristóteles, exige paciência e humildade para reconhecer no tempo um aliado, e não um inimigo.
Porém, independentemente das minhas crenças, precisamos ter maturidade ideológica para defendermos nossas posições de forma clara e aberta. Não consigo aceitar que justificativas falseadas sejam o sustentáculo das ações de pessoas que detêm o múnus público de defender a sociedade. Neste ponto, me desculpe o procurador Dallagnol, mas me parece muito mais honesto intelectualmente admitir que ele crê em um utilitarismo do papel do Ministério Público do que tentar nos convencer de que suas conversas sobre o modus operandi adotado num processo com um magistrado não passam de simples interlocução das partes.
Proponho exatamente que aproveitemos o momento para discutirmos em sociedade, abertamente, como nos indica Michael Sandel na conclusão da sua obra acima referida: “Em vez de evitar as convicções morais e religiosas que nossos concidadãos levam para a vida pública, deveríamos nos dedicar a elas mais diretamente – às vezes desafiando-as e contestando-as, às vezes ouvindo-as e aprendendo com elas (...) Uma política de engajamento moral não é apenas um ideal mais inspirador do que uma política de esquiva do debate. Ela é também uma base mais promissora para uma sociedade justa”.
Glauco Requião advogado, ex- Diretor de Meio Ambiente da Sanepar e criador da plataforma Postura Sustentável.
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