Em que pesem as discussões acerca do mérito quanto ao cometimento ou não de crimes por parte do deputado federal Daniel Silveira, a questão da sua possibilidade ou não de concorrer às eleições deste ano tem chamado muita atenção no mundo jurídico.
Antes de adentramos propriamente no mérito da discussão, precisamos esclarecer que a graça (indulto individual), o indulto e a anistia são causas extintivas de punibilidade, segundo o que dispõe o inciso II do artigo 107 do Código Penal. Voltando rapidamente nossos olhos ao instituto jurídico da graça (por alguns chamada de clemência), ela pode ser definida como o perdão individual concedido pelo presidente da República, favorecendo um condenado por crime comum ou por contravenção, extinguindo-lhe ou diminuindo-lhe a pena imposta, nos limites determinados no próprio decreto presidencial, remanescendo os demais efeitos da sentença condenatória.
Muito se discute acerca dos institutos da graça e do indulto, não tendo o ordenamento jurídico nacional feito uma distinção muito clara a este respeito, uma vez que tanto o Código de Processo Penal (de 1941) quanto a Constituição Federal (de 1988) tratam expressamente sobre o instituto da graça como um instituto diferenciado do indulto. Embora o artigo 84, XII discorra somente sobre o indulto, existe uma distinção estabelecida entre os dois institutos feita no artigo 5.º, XLIII, quando considera insuscetíveis de graça ou anistia os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, os crimes hediondos e os de terrorismo.
Assim, embora não haja previsão expressa da graça entre as atribuições do presidente da República (artigo 84, XII, da Constituição), a doutrina entende que a graça se encontra entre as atribuições presidenciais pelo fato de a mesma ser uma espécie da qual o indulto é o gênero, assim sendo porque confere-lhe o nome de “indulto individual”, tendo como conteúdo a pessoa do condenado, ao contrário do indulto gênero ou coletivo, que tem como conteúdo determinados fatos. Entretanto, a Lei de Execução Penal (de 1984), nos seus artigos 188 a 192, trata o tema da graça usando o termo “indulto individual”, como passaremos a tratá-lo como sinônimo de graça.
Assim, fundamentado no inciso XII do artigo 84 da Constituição e no artigo 734 do Código de Processo Penal, o presidente editou decreto que concedeu graça (indulto individual) ao deputado federal Daniel Lúcio da Silveira, após o Supremo Tribunal Federal tê-lo condenado, no âmbito da Ação Penal 1.044, a pena de oito anos e nove meses de reclusão, pelos crimes de tentar impedir por grave ameaça o livre exercício do Poder Judiciário (artigo 18 c/c artigo 23, IV, ambos da Lei 7.170/1983) e coação no curso do processo (artigo 344 do Código Penal).
Pelo decreto, o presidente concedeu graça à pena privativa de liberdade, bem como às penas restritivas de direitos e de multa, independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Até aqui, tudo certo. O problema surge quando se põe em discussão se essa condenação torna Silveira inelegível ou não.
A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) alterou a Lei Complementar 64/1990, que estabelece os casos de inelegibilidade, de acordo com o disposto no § 9.º do artigo 14 da Constituição Federal. Nesta alteração, em nenhum momento a Lei da Ficha Limpa estabelece condição de inelegibilidade para o caso de condenação penal nos crimes pelos quais o deputado foi condenado.
Os que se apegam à tese da inelegibilidade afirmam – erroneamente, ao nosso ver – que o decreto presidencial não inocenta o parlamentar, que então permaneceria condenado, apenas aguardando o trânsito em julgado. Assim, subsistiriam os efeitos secundários da prisão, que seriam a perda do mandato e a suspensão dos direitos políticos. Em condições normais – ou seja, antes da prolação da sentença –, para refutar tais entendimentos, explicamos que a concessão do indulto individual acarreta – segundo o artigo 107, II, do Código Penal – a extinção da punibilidade do agente, ou seja, a perda, por parte do Estado, da pretensão de punir, não havendo a possibilidade de se impor uma penalidade ao réu. Em assim sendo, por força do artigo 397, IV, do Código de Processo Penal, em se havendo a concessão de indulto e a consequente extinção da punibilidade, não há que se falar em sentença condenatória, mas em sentença absolutória, não havendo que se falar em subsistência de efeitos de uma sentença condenatória que não pode sequer subsistir depois de concedido o indulto, muito menos produzir efeitos.
Ocorre que, em já tendo havido a prolação de sentença condenatória, a concessão de indulto individual atinge tão somente os efeitos primários da condenação, ou seja, da pretensão executória do Estado, subsistindo os efeitos secundários, penais ou extrapenais, segundo entendimento da Súmula 631 do STJ.
Assim, o artigo 92 do Código Penal estabelece como efeitos secundários da sentença a perda do cargo, função pública ou do mandato eletivo quando a pena privativa de liberdade for superior a quatro anos (inciso I, b). Para que sejam válidos, a sentença condenatória tem de lhes fazer menção expressa. Desta forma, em tese, estaria o deputado Daniel Silveira afastado de suas funções parlamentares, uma vez que o artigo 15, inciso III da Constituição estabelece a suspensão dos direitos políticos do condenado como efeito automático e secundário da sentença condenatória.
Em assim sendo, a discussão sobre se haveria aplicação direta deste efeito condenatório por parte do STF ou se a questão deveria ser apreciada pela Câmara dos Deputados é uma questão que há muito vem sendo debatida na doutrina e na jurisprudência; de uns tempos para cá, ela vem tomando forma nos julgamentos dos tribunais superiores, que vêm entendendo que a sentença penal condenatória transitada em julgado determina a imediata perda ou extinção do mandato e, em recebendo a comunicação da condenação transitada em julgado, o presidente da casa legislativa deve imediatamente declarar a perda do mandato eletivo e convocar o suplente do condenado parlamentar como consequência inevitável.
Ocorre que o artigo 55 do texto constitucional (que trata das hipóteses de perda do mandato parlamentar de deputados e senadores), diferentemente do entendimento jurisprudencial, entende que a perda do mandato parlamentar nos casos de condenação criminal em sentença transitada em julgado (artigo 55, VI) deverá ser decidida por maioria absoluta da respectiva casa (artigo 55, §2.º), não competindo ao órgão judicial a determinação de perda automática do mandato. Ainda que ocorra a suspensão dos direitos políticos (não confundir com a perda do mandato em virtude da condenação), a perda do mandato pela suspensão também deve ser discutida em plenário (artigo 55, §3º).
Destarte, somente após a extinção da punibilidade pelo cumprimento dos efeitos secundários da sentença penal condenatória é que o condenado parlamentar teria direito ao restabelecimento de seus direitos políticos e, portanto, novamente estaria elegível, isto porque a Súmula 9 do TSE estabelece que a suspensão de direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena, independendo de reabilitação ou de prova de reparação dos danos. Em miúdos: o deputado Daniel Silveira poderia até perder seu mandato parlamentar, mas o seu cumprimento de perda automaticamente faria cessar os efeitos desta sentença, não o tornando inelegível por ausência de expressa previsão legal e por conta da súmula eleitoral.
Aécio Flávio Palmeira Fernandes é advogado especialista em Direito Constitucional.