Montesquieu dizia que todo homem que tem poder tende a abusar dele. Por isso, o filósofo francês desenvolveu a teoria da separação dos poderes, os quais controlariam uns aos outros para evitar excessos de cada parte, no que ficou conhecido como o sistema de “freios e contrapesos”. Na teoria, os poderes Executivo e Legislativo são os protagonistas na condução dos negócios públicos, enquanto o Poder Judiciário exerce um papel mais discreto e limitado de resolver os conflitos nascidos a partir da convivência em sociedade. Para o escritor iluminista, as disputas entre os poderes Executivo e Legislativo representavam o maior risco de ruptura dessa engenhosa organização política. O que Montesquieu jamais imaginou é que esse delicado e tenso equilíbrio pudesse ser ameaçado pelo Poder Judiciário. Mas essa ameaça existe e tem um nome: ativismo judicial.
O Brasil talvez espelhe na atualidade o exemplo mais eloquente dessa ameaça, representada pelas recentes decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal (STF). Há muito o tribunal assenhorou-se de competências do Poder Legislativo. Foi assim, por exemplo, quando legalizou o aborto de bebês anencéfalos, reconheceu a união civil entre homossexuais e criou o crime de “homofobia” (a liberação do uso de drogas está no forno). A inação do legislador frente a essas investidas estimulou o avanço também sobre as competências do Poder Executivo. Nesse sentido, o STF barrou a nomeação de um delegado de polícia para o posto de chefe da Polícia Federal, suspendeu a determinação do governo federal de isentar de impostos a importação de armas, proibiu a polícia de realizar operações de combate ao crime em favelas no Rio de Janeiro e, o mais grave, instaurou inquéritos de natureza penal para investigar e prender quem, na opinião dos ministros, oferece algum risco a eles próprios ou comete atos “antidemocráticos”.
Para ser justo, cumpre dizer que o ativismo judicial não é uma invenção tupiniquim. Esse empoderamento do Judiciário começou em 1803, nos EUA, quando a Suprema Corte de lá, sob o comando do visionário juiz John Marshall, decidiu o caso Marbury v. Madison. Nesse precedente, fixou-se o entendimento de que o Poder Judiciário é competente não apenas para revisar os atos do Poder Executivo, mas também do Poder Legislativo. Nascia, então, o chamado “controle de constitucionalidade” e a ideia de que cabe ao Judiciário dar a última palavra em matéria de leis. Apesar de se autoconceder uma competência poderosíssima, os tribunais americanos fizeram pouco uso dessa ferramenta até as décadas de 1950 e 1960, quando o ativismo judicial ganhou destaque. Nesse período, a Suprema Corte americana, sob a liderança do juiz Earl Warren, tomou uma série de decisões paradigmáticas envolvendo conflitos raciais e reconhecimento de direitos civis.
Ironicamente, nessa mesma época os juízes perceberam o risco do ativismo e resolveram fixar limites aos seus próprios poderes, por meio da chamada “political question doctrine”. De acordo com essa doutrina, lapidada no julgamento do caso Baker v. Carr (1962), o Poder Judiciário não deve se intrometer em questões eminentemente políticas, as quais devem ser enfrentadas e resolvidas pelo governo e pelo legislador. Mas por que os supremos juízes americanos resolveram limitar os seus próprios poderes?
A decisão em Baker v. Carr não deixa essa resposta clara, mas as entrelinhas do julgado denotam que os magistrados norte-americanos perceberam que as decisões políticas numa democracia representam a vontade de uma maioria ocasional, formada a partir de um complexo processo que envolve diversos atores e interesses que permeiam a sociedade. A política, representada pelos poderes Executivo e Legislativo, é a arena na qual esses atores entram em disputa para formar essas maiorias em torno dos seus interesses. Ao fim, tem-se as decisões materializadas em leis e em políticas públicas de governo. Esse processo conta com a ativa participação popular, não apenas por ocasião das eleições, quando os cidadãos elegem os seus representantes, mas também por força de consultas, audiências e debates públicos destinados a ouvir os anseios da sociedade. A legitimidade da decisão tomada repousa justamente nesse jogo político democrático. Daí porque mesmo quem perde a disputa em um determinado momento respeita e aceita a decisão, pois sabe que, de tempos em tempos, terá a oportunidade de eleger novos representantes e, quem sabe, formar uma maioria para fazer valer os seus interesses.
O processo que culmina em uma decisão judicial não segue essa lógica, especialmente no Brasil, onde o povo não elege os seus juízes e tampouco participa das decisões judiciais. A legitimidade da decisão judicial repousa unicamente na Constituição e nas leis. Daí porque o juiz, ao decidir, deve indicar precisamente quais dispositivos legais fundamentam a sua sentença. Assim, eventual insatisfação será dirigida contra o legislador que editou a lei e não contra o juiz que apenas fez cumpri-la. Ao decidir baseado na lei, o juiz transfere para o legislador o ônus da decisão política que resultou na aprovação da norma. O juiz, como Pôncio Pilatos, lava as suas mãos. Agora, se o magistrado toma uma decisão sem respaldo em lei ou, pior, distorce os comandos legais a pretexto de interpretá-los, aí a sua decisão já não é mais técnica e sim política. Essas decisões de cunho político eximem o governo e o legislador de qualquer responsabilidade, atraindo para o Poder Judiciário o perigoso ônus da insatisfação popular.
Só que, diferentemente dos governos e dos legisladores, os juízes não são substituídos periodicamente em eleições, ou seja, não há uma válvula de escape. Essa indignação contra decisões judiciais políticas amplifica-se na medida em que mais e mais pessoas não se sentem representadas por esses vereditos, aumentando a pressão sobre os magistrados. Ora, os cidadãos elegem presidente, governadores, prefeitos, deputados e senadores para que esses governantes implementem determinadas políticas públicas. Se essas ações de governo são barradas pelo Poder Judiciário, que resolve impor uma agenda política diferente, a revolta popular tende a crescer mesmo. Disso resulta o que temos aí hoje: ministros da mais alta corte do país sendo enxovalhados e hostilizados por um número cada vez maior de pessoas aborrecidas com as decisões políticas tomadas pelo tribunal.
A solução democrática para coibir abusos de poder de altas autoridades da República, inclusive do Poder Judiciário, é o seu impedimento para o exercício do cargo (impeachment, em inglês). Nos EUA, Samuel Chase foi o único juiz da Suprema Corte impedido de exercer as suas funções, quando, em 1804, os deputados o acusaram de “comportar-se de modo arbitrário, opressivo e injusto ao anunciar suas interpretações jurídicas sobre a lei de traição antes de o advogado de defesa ser ouvido”. O magistrado também foi acusado de “promover continuamente sua agenda política no tribunal, tendendo assim a prostituir o Poder Judiciário com questões partidárias-eleitorais menores”. Apesar de ter sido absolvido pelo Senado, o caso serviu de lição para os togados da América que, desde então, sabiamente compreenderam que invadir as competências de outros poderes pode levar a uma crise de legitimidade da Justiça e desencadear uma ruptura institucional que, ao fim e ao cabo, poderia resultar no sacrifício do próprio Poder Judiciário. Esse entendimento foi consolidado um século e meio mais tarde, quando a Suprema Corte impôs a si própria e aos juízes em geral um prudente distanciamento das disputas políticas. Por certo não foi um espírito altruísta que animou os supremos magistrados americanos a se autolimitarem. O que verdadeiramente os motivou a tanto foi o instinto de sobrevivência, algo que definitivamente parece faltar aos seus pares brasileiros.
Leandro G.M. Govinda é especialista em Direito Tributário, promotor de Justiça em Santa Catarina e cofundador do Canal do Promotor no YouTube.
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