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O Beco do Barba era uma daquelas barbearias que sobreviveram às décadas, graças ao carisma do dono, que recebia a clientela sempre com um sorriso no rosto, um cafezinho e dois dedos de prosa na ponta da língua. Barba chamava os clientes pelo nome, figuras carimbadas ali do entorno da Avenida Nossa Senhora de Copacabana – coração da Cidade Maravilhosa.
A pandemia esvaziou temporariamente a barbearia, mas naquela semana estava retornando às atividades. Aristeu, um antigo e falante frequentador do salão desabafava, contava suas angústias e dilemas. Por isso Barba cumpria, de uma certa forma, o papel de terapeuta dos clientes.
Barba percebe que, naquele dia, aquele homem grisalho e viúvo, funcionário público aposentado, que habitava a casa dos 70 anos, estava especialmente indignado com tudo aquilo que vinha acontecendo politicamente no Brasil. E esperava receber a escuta amável do velho amigo de fé, irmão camarada, de tantas jornadas.
“Lula está mentindo descaradamente, você viu isso, Barba? Aquele caminhão de provas contra ele e o sujeito está dizendo descaradamente que foi absolvido sem ter sido. Que a Lava Jato arruinou a economia, causando desemprego e miséria, como se o correto fosse não punir os corruptos. Dá para acreditar num troço desses? Querem o que: que sejam devolvidos os bilhões recuperados para os excelentíssimos corruptos?”
Barba faz um gesto afirmativo com a cabeça, transmite expressão de reprovação e comenta: “A mentira, Aristeu, é algo tão antigo como a história humana. E, infelizmente, muita gente cria narrativas e as repete, já calculando que o desmentido nunca neutralizará por completo os efeitos danosos da mentira espalhada. Sempre haverá gente que não soube do desmentido e terá na cabeça a versão falsificada”.
Barba vai aparando os cabelos de Aristeu, manuseando a tesoura com elegância, e eles conversam como se fossem decidir os destinos do país.
“E não para por aí, Barba. As barbaridades que estão acontecendo no Congresso Nacional para blindar os corruptos estão ultrapassando qualquer limite. Estão se aproveitando da desarticulação da pandemia e mudando as leis ‘de boiada’. Onde está o combate à corrupção que o presidente prometeu em campanha?”
“Não sei onde vamos parar, sinceramente. Na semana passada, naquele tal de pacote anticrime, inverteram todo o jogo e agora está proibido o uso de gravações feitas pelas vítimas ou por policiais ou jornalistas infiltrados para comprovar crimes. Imagine-se que se uma mulher, aterrorizada pelo marido, consegue gravar as ameaças de morte e, desesperada, vai até a polícia levando a gravação, não tem mais valor. Só serve para livrar a cara do acusado, que já tem o direito de mentir em autodefesa.”
Barba faz cara de surpresa e rebate: “Então quer dizer que se policiais civis tentarem me extorquir e eu conseguir gravar isto e levar para a Promotoria fazer a investigação, não vale? Como provar a extorsão?”
Aristeu não deixa a bola pingar e emenda: “Levar para a Promotoria? Pois é, amigo Barba, lamento te informar que querem de novo impedir o MP de ter o pleno poder de investigação criminal, mesmo depois de todo aquele debate sobre a PEC 37. Na minha opinião isso ultrapassa todos os limites aceitáveis. Isso não é mais ‘regra do jogo’. Isso é regra para blindar quem viola a lei, para garantir a impunidade por lei. Isso é total e absoluto desrespeito à sociedade.”
Barba pede para Aristeu reclinar-se para ele poder aparar a barba do cliente, que sairia dali minutos depois renovado e aliviado por ter desabafado com Barba. Mas, na mesma proporção, frustrado em relação aos rumos do país. Ele atravessa o calçadão e chega perto do mar para se reenergizar. Observa aquela maravilha da natureza, respira fundo e toma o rumo de casa.
Roberto Livianu é doutor em Direito, procurador de Justiça em São Paulo, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e cronista, autor de “50 Tons da Vida – 2018” e “50 Tons da Vida – volume 2 – 2020”.