Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

Decisão do STJ joga incerteza nas futuras concessões do Novo Marco Legal do Saneamento

Fachada do edifício sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ). (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Ouça este conteúdo

O Novo Marco Legal do Saneamento, instituído pela Lei 14.026/2020, tem uma missão ambiciosa pela frente, pois, segundo o senador Tasso Jereissati, relator do então Projeto de Lei 4.162/2019, 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada e metade da população brasileira (em torno de 104 milhões de pessoas) não tem serviços de coleta de esgoto.

Em seu parecer sobre o PL, Jereissati citou o estudo Benefícios econômicos e sociais da expansão do saneamento brasileiro, elaborado pelo Instituto Trata Brasil, no qual se estima que a universalização dos serviços de saneamento no Brasil proporcionaria benefícios econômicos e sociais da ordem de R$ 537 bilhões ao longo das próximas duas décadas.

Para universalizar os serviços de saneamento no Brasil até o ano de 2033, a XP Investimentos projeta que seriam necessários recursos na ordem de R$ 411 bilhões, enquanto o UBS projeta um valor ainda maior, na ordem de R$ 620 bilhões.

No modelo estabelecido pela Lei 14.026/2020, os investimentos necessários para universalizar os serviços de saneamento no Brasil serão captados junto ao mercado e a modelagem contratual necessariamente será a do regime das concessões. Neste regime, temos a grosso modo um contrato longo (de mais de uma década, por exemplo) no qual o concessionário faz um grande aporte de investimentos e vai ser remunerado pela tarifa cobrada junto aos usuários. Ou seja, para que o concessionário obtenha o retorno dos seus investimentos é preciso que o contrato seja extinto apenas e tão somente com o advento do seu termo (e aqui fique claro que estamos falando de uma simplificação, vez que, mesmo que o contrato se encerre normalmente, certamente um contrato longo como o de concessão demandará que a sua equação econômico-financeira seja reequilibrada ao longo da execução contratual).

Mas as concessões não se encerram apenas com o advento do termo contratual; elas também podem se encerrar, por exemplo, em razão da caducidade, da rescisão e da encampação. A caducidade e a rescisão ocorrem quando há o descumprimento das normas contratuais. A caducidade é uma penalidade aplicada ao concessionário, ao passo que a rescisão incide em face do poder público, mas só pode ocorrer em juízo.

E a encampação? Nos termos da Lei de Concessões, a encampação ocorre quando o poder público, por motivo de interesse público, retoma o serviço concedido, mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento da indenização. Guardemos, assim, as duas ideias centrais sobre a encampação: ela não é uma punição (vez que nela não se discutem descumprimentos de normas contratuais) e ela só ocorre após o concessionário ser indenizado.

A regra do jogo é essa e quem investe recursos em concessões trabalha na expectativa de que essa seja a realidade. No cenário estabelecido pelo Novo Marco Legal do Saneamento, por óbvio que a expectativa de investidores e dos futuros concessionários é a mesma.

Pois bem: visando encampar a operação e a manutenção da Avenida Governador Carlos Lacerda (mais conhecida como Linha Amarela), prevista no Contrato de Concessão 513/1994, o município do Rio de Janeiro editou a Lei Complementar 213/2019, que estabeleceu que a prévia indenização devida ao concessionário fosse amortizada “em razão dos prejuízos apurados pelo Poder Executivo, pelo Tribunal de Contas do Município e reconhecidos em investigação conduzida pela Câmara de Vereadores, sem prejuízo da apuração de eventual saldo remanescente a ser devolvido aos cofres públicos”. E mais, a lei ainda previu que, “como medida preventiva a eventuais impugnações, o Poder Executivo poderá instituir caução para prevenir a necessidade de amortização em favor da concessionária”. Ou seja, em termos claros: a lei municipal permitiu que ocorresse uma encampação motivada por razões que ensejariam uma caducidade e sem que houvesse o pagamento da prévia indenização ao concessionário.

Para surpresa de ninguém, obviamente a discussão foi judicializada, tendo o município do Rio de Janeiro sofrido revés em três decisões do TJ-RJ, que lhe impediam de promover a desejada encampação. O que surpreendeu negativamente a todos os que operam no mercado de infraestrutura foi o fato de a Presidência do STJ, no processo SLS 2792, ter suspendido as três decisões do TJ-RJ e, assim, permitir a encampação nos moldes da LC 213/2019.

E agora? Caso a decisão do STJ não seja revertida pelo plenário da própria corte ou pelo STF, teremos a chancela judicial da possibilidade de o poder concedente, em caso de desavenças com o concessionário, em vez de instaurar uma caducidade (que exige contraditório e ampla defesa), promover não só uma encampação, mas uma encampação que não é precedida da prévia indenização ao concessionário.

Para quem precisa de valores entre R$ 411 bilhões e R$ 620 bilhões para universalizar os serviços de saneamento no Brasil até 2033, não é preciso muita imaginação para desenhar qual o impacto que essa decisão do STJ pode ter junto aos investidores que pretendem participar das licitações para ser concessionários no setor de saneamento. O momento é de apreensão.

Aldem Johnston Barbosa Araújo, advogado, é especialista em Direito Público.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.