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Quando a decisão judicial é aparentemente conforme à lei, mas a desrespeita

Prisão em segunda instância
(Foto: Pixabay)

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"Não importa que a vulneração se mostre velada pelo silêncio do julgador ou se aninhe oculta nas dobras e refego da sentença. Não montaria até que a sentença proclamasse e anunciasse fieldade e obediência ao texto malferido." Nessa lição citada por José Afonso da Silva, referia-se o ministro Orozimbo Nonato, que atuou no Supremo Tribunal Federal (STF) entre 1941 e 1960, ao caso em que a decisão judicial é aparentemente conforme à lei, mas a desrespeita.

Afirmava, então, encontrar-se presente questão federal que poderia ser veiculada através do recurso extraordinário. Ao ler essa passagem, porém, alguns têm impressão de que ele se referia à hipótese em que há divergência entre a vontade real e a vontade declarada no julgado.

Mas o tema é mais amplo: diz respeito a todas as esferas em que pode haver tomada de decisão estatal, além da judicial, incluindo a administrativa e a legislativa, e tem várias camadas. Um dos aspectos que chamam a atenção diz respeito à possibilidade de o grau de comprometimento da vontade dos agentes estatais ser tão profundo e disseminado a ponto de se colocar em risco a própria ideia de Estado Democrático de Direito.

O assédio à democracia, como se vê, é algo que ocupa o pensamento de muitos estudiosos do direito, em vários locais do globo terrestre.

Para alguns, o cinismo é uma das características da sociedade moderna. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, na obra Os tempos hipermodernos, usa o termo espetáculo cerimonial”: os agentes vivem a afirmar princípios em discursos que são por eles mesmos deixados de lado em sua vida social. A desfaçatez, o descaramento e o descaso pela ética orientam a prática cotidiana, enquanto o discurso é marcado por palavras de ordem em defesa da moral e dos bons costumes.

A professora Heidi Li Feldman, da Universidade de Georgetown, em mensagem veiculada em sua conta no Twitter, chamou a atenção para o problema que, a seu ver, vem acontecendo nos EUA. Normalmente, diz ela, estuda-se e ensina-se direito naquele país partindo do pressuposto de que presidentes, governadores, legisladores estaduais e federais e juízes dos tribunais têm um compromisso básico com o Estado de Direito e a Justiça.

De fato, quando estudamos e lecionamos sobre a Constituição ou as leis, os atos dos administradores públicos ou as decisões judiciais, também nós, por aqui, partimos do pressuposto de que todos os agentes que participam dessa construção têm aspirações democráticas e pretendem realizar os direitos fundamentais previstos na Constituição.

Estudamos os erros e as falhas como uma “patologia”, não como algo que está na própria “fisiologia” do funcionamento do Estado. Retornando ao que escreveu a professora Heidi Li Feldman, destaca ela o fato de que os estudiosos do direito devem procurar demonstrar que o discurso jurídico pode ser utilizado para dissimular a violação a direitos fundamentais.

É possível fazer algumas aproximações entre essas reflexões e as que fez, em outro continente, o professor Joaquín Urías, da Universidade de Sevilla, em manifestação recente publicada na imprensa, dedicada à análise de dificuldades que, segundo afirma, vêm se apresentando na Espanha.

Narra ele um episódio em que, através de ações policiais orientadas, realizadas com o apoio da imprensa, influencia-se o debate público com notícias falsas, com o propósito de macular eleições a serem realizadas naquele país. Diz ele, que a democracia consiste essencialmente na liberdade individual e coletiva de decidir nosso próprio destino. Isso exigiria, por um lado, que a direção da sociedade obedeça à vontade coletiva expressa por meio de eleições e mecanismos de participação. Mas também exige que cada indivíduo goze de um “espaço invulnerável de autodeterminação”. Para o jurista citado tal espaço seria garantido pelos direitos fundamentais, judicialmente, mesmo contra o poder da maioria.

Outro alerta importante de Urías diz respeito ao que ele chama de “funcionamento partidário das forças de segurança”, que representa uma ameaça direta contra milhões de cidadãos que pensam de forma diferente. Tal força nefasta só poderia, no entender do professor, ser combatida com um judiciário poderoso e independente, capaz de cumprir sua tarefa de garantidor de direitos e freio ao poder. Entretanto, o professor espanhol não vê isso sendo debatido nas universidades espanholas: "Nas faculdades continuaremos explicando a Constituição, os direitos fundamentais e a democracia. Mas esses conceitos não são mais alusivos a uma realidade espanhola", diz ele.

O assédio à democracia, como se vê, é algo que ocupa o pensamento de muitos estudiosos do direito, em vários locais do globo terrestre. Ainda assim, não se pode afirmar que houve a vitória definitiva do materialismo e do cinismo, pois nossa época é também "marcada por uma reconciliação inédita com os fundamentos humanistas", como destaca Lipovetsky.

Mas, em um contexto em que o Estado Democrático de Direito se encontra em crise e em risco, qual o papel dos juristas? Talvez uma das respostas possa ser encontrada neste texto de Celso Furtado, em seus Ensaios sobre a cultura. No texto, ele ressalta a importância de se perseguir o ideal, a utopia, que, nas palavras dele, "antecipa a ampliação do horizonte de potencialidades aberto ao homem”. Para Furtado, em épocas de crise, os intelectuais e pensadores precisam agir, analisando a realidade social, e afastar a irracionalidade. “Cabe-lhes projetar luz sobre os desvãos da história, onde se ocultam os crimes cometidos pelos que abusam do poder; cabe-lhes auscultar e traduzir as ansiedades e aspirações das forças sociais ainda sem meios próprios de expressão".

Nesse ambiente, os estudiosos do direito, em sua atuação, têm a grave tarefa de se manifestar de modo a impedir que a Constituição e as leis sejam interpretadas e usadas contra o próprio Estado de Direito, em um assédio à democracia.

José Miguel Garcia Medina, doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015. É advogado e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados.

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