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Os homens jovens que mataram o menino João Hélio agiram com tanta crueldade que as pessoas se recusam a vê-los como humanos. Animais, bárbaros, facínoras; adjetivos que na verdade retratam o intento de substantivo, de afirmar que esses jovens, em razão da conduta, não pertencem à espécie homo sapiens. Contudo, eles são humanos e a sua crueldade é a exposição nítida das vísceras da natureza humana.

Filas de crianças em direção às câmaras de gás do nazismo, crianças sem braço em Serra Leoa, a morte dos bebês a mando de Herodes e o infanticídio das meninas na China foram e são praticados por humanos. Horrorizar-se, comover-se, diante da violência praticada contra quem não sabe se defender é da nossa alma. Mas de que vale a aguda dor que todos nós sentimos hoje e que não se prolongará porque é da nossa natureza individual esquecer e seguir adiante, até que nos comovamos com nova atrocidade. Cada brasileiro individualmente sofre pela morte de João Hélio e continuaremos sofrendo com outras se nos mantivermos isolados, resignados, sem a percepção de que a luta contra a cruel natureza humana é feita coletivamente.

Kim Phuc, a menina vietnamita queimada pelo napalm lançado pelos americanos, comoveu intensamente as pessoas ao redor do mundo. Mas o sofrimento estampado na face e na expressão corporal de Kim não se evaporou com as lágrimas: ele se transformou num movimento coletivo, organizado, que acelerou o fim da guerra.

O sofrimento por João Hélio deve ser para nós o que foi o de Kim para os americanos: ponto de inflexão, momento no qual aflora a convicção de que a responsabilidade é nossa e que as características da vida em coletividade não são um dado da natureza; ao contrário, retratam o padrão ético que seguimos nas nossas relações privadas e públicas.

Sociedades, coletividades, conseguiram conter a violência ao construír instituições públicas que asseguraram qualidade mínima de vida a todos os indivíduos, sem pobrezas extremas, e, de outro lado, não foram laxas, preguiçosas, diante dos indivíduos acentuadamente violentos. Porém, nada disso é fácil e de abordagem monocausal. Não basta afirmar que a pobreza é causa da violência e que o governo deve resolver isso. Se a pobreza, por si só, causasse violência, a Índia seria o lugar mais violento do mundo e os Estados Unidos o mais tranqüilo. Há outros componentes que dizem muito de perto com o modo como as pessoas aceitam condutas imorais sem violência de sangue. A frouxidão com a corrupção nas atividades privadas e públicas, com a irresponsabilidade de pessoas (ricas ou pobres) que geram filhos e não os educam para a vida em comunidade, a aceitação quase sádica da violência policial, a glamourização do consumo de drogas, são posturas individuais, particulares, que formam o ecossistema da violência.

Individualmente somos pouco exigentes com a qualidade ética das pessoas com as quais nos relacionamos e isso, ampliado para a coletividade, resulta em desídia, preguiça, diante da ineficiência das instituições públicas para, de um lado, melhorarem a qualidade de vida de todas as pessoas e, de outro, entregarem o serviço básico de segurança pública.

É humanamente impossível dizer que nunca mais haverá violência. Mas é possível afirmar individual e coletivamente que nunca mais haverá indolência. Nunca mais as pessoas públicas, os políticos, poderão conduzir-se sem ética, espalhando a impressão de que nós, o povo, admiramos os bandidos e odiamos as pessoas honestas.

Algumas mortes trazem um novo modo de viver. Gandhi, Martin Luther King. É isso que João Hélio deve ser para nós, a causa de um novo modo de viver a nossa brasilidade. Não pelo que ele fez, mas pelo que nós não fizemos para ele: construir um ambiente honesto para viver.

Friedmann Wendpap, é professor e juiz federal.

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