Está em curso, na sociedade, uma retomada sobre o sentido da beleza. Muito se tem falado sobre o tema da beleza, especialmente no contexto em que vivemos, onde as experiências culturais nas artes estão cada vez mais extravagantes. A partir da ascensão do modernismo e da arte contemporânea — com seus prismas ultra-individualistas em que a única proposta é a desconstrução de qualquer premissa normativa —, vemos obras que desafiam cada vez mais nossa compreensão.
Na arquitetura, na moda, nas artes plásticas, essa visão tornou-se quase hegemônica. Faz sentido, portanto, que o questionamento sobre o papel da beleza volte a borbulhar em alguns recantos culturais, especialmente entre aqueles que se identificam com uma percepção mais conservadora ou religiosa da cultura. É bom que tenhamos essas discussões. Porém, há diversas ideias circulando sobre esse tema que não condizem com o processo criativo quando se fala em produzir objetos e obras belas. Essa constatação fica evidente quando estamos diretamente envolvidos nessa produção. É necessário avaliar o papel da beleza a partir de uma visão que seja condizente com a experiência concreta de criar obras que sejam belas.
Existe uma certa neblina quando tentamos partir para um conceito mais assertivo sobre a beleza. Não à toa, o tema da estética e da beleza vem sendo discutido há muitos séculos
E por que esse é um tema relevante? Em primeiro lugar, porque a beleza é um dos três transcendentais, ao lado da bondade e da verdade. Esses são atributos divinos que permeiam todas as coisas criadas. Tudo o que existe, incluindo nossas próprias vidas, tende a um desses atributos. Tudo isso tem a ver com tem relação com a finalidade: o porquê e o para quê algo foi criado. O sentido das coisas sempre será ditado por beleza, bondade e verdade.
Para dar um exemplo prático: considere a finalidade de um objeto simples como uma faca. O objetivo, a finalidade de uma faca é cortar. Se ela não corta, ou é uma faca ruim ou não é uma faca. A bondade da faca está em cortar bem, tornando-se assim uma boa faca — na medida em que melhor cumpre esse fim. Até aqui, temos dois transcendentais: a bondade e a verdade. A verdade da faca é sua finalidade, a bondade da faca é o grau qualitativo como ela atinge essa finalidade. Verdade e bondade são facilmente identificados na faca. Porém, quando chegamos ao terceiro transcendental, a beleza, parece que ele extrapola a finalidade prática do objeto. Sim, a beleza da faca também se encontra na sua função de cortar, mas não haveria outras propriedades nesse objeto que garantam sua beleza? Não há uma ergonomia, um estilo, um encanto que ultrapassam a finalidade prática? Ou seja, a verdade e a bondade de objetos simples parecem ser mais facilmente definidos do que sua beleza.
Existe uma certa neblina quando tentamos partir para um conceito mais assertivo sobre a beleza. Não à toa, o tema da estética e da beleza vem sendo discutido há muitos séculos. E há uma série de motivos para isso — a começar pela origem do termo “beleza”, que remete ao latim pulchrum, que pode ser traduzida como "unidade". Esta é uma das palavras que definem a beleza.
Ou seja, beleza é unidade. Justamente porque a característica própria da beleza é a harmonia das partes com o todo. Dizemos que algo tem unidade quando suas partes estão harmônicas com o todo. Isso é problemático pois, para que o todo seja harmônico, é necessário que haja uma relação harmônica entre as partes. Ou seja, a beleza é relacional, dependendo de um conjunto de fatores, segundo o ideal da unidade. Esse aspecto dificulta qualquer esforço de definição. A beleza de um elemento depende de sua relação com outros elementos. É como se, para sabermos o que é a beleza, precisássemos nos colocar em relação direta com ela.
Nesse contexto, o primeiro erro na definição da beleza está em enxergar relacioná-la como deleite estético. Afinal, a beleza não é necessariamente agradável. Em certas situações, inclusive, ela precisa ser horrorosa, sendo fundamental que cause um incômodo para representar a verdade de alguma realidade. Um exemplo disso está nas gárgulas das catedrais: são seres tenebrosos, muitas vezes com suas genitálias expostas como nas catedrais inglesas e irlandesas do início do período medieval, mas que cumprem um propósito.
Outro exemplo está na representação do inferno nas obras cristãs, como nos quadros de Hieronymus Bosch, com detalhes horrendos. E, nos dois casos, estamos diante da beleza. O mal está representado em relação ao bem, ao céu, ao juízo final. Repetindo: a beleza é relacional. E o inferno, em unidade com os demais elementos, expressa o transcendental. Nesses casos, é necessário que haja a feiura para que as obras tenham uma expressão mais verdadeira das suas realidades.
Faria mais sentido pensarmos na beleza não como algo externo a nós — mas como algo que cresce junto conosco, na medida em que buscamos a verdade e a bondade na vida
Um segundo problema está na idealização do belo como norma estética. Sobre isso, recomendo o excelente documentário Arquitetura da destruição, disponível na plataforma de streaming Lumine. Dirigido por Peter Cohen, o filme mostra que a ideologia nazista possuía dois pilares ideológicos: a ciência (utilizada para determinar quem era saudável ou não, do ponto de vista da ordem social) e a beleza nas artes e na cultura.
Os nazistas tinham a compreensão de que a arte deveria representar algo esteticamente imponente e cativante. Por conta disso, muitas obras de artistas modernos foram destruídas pelo partido. É famoso o episódio em que foi criada uma galeria para expor obras de arte “degeneradas” como forma de removê-las do debate público. Não obstante, os nazistas propuseram uma produção artística condizente com seus princípios. Basta dizer que essas obras têm pouco valor estético e parecem uma expressão kitch da arte clássica. Isso porque a normatividade da arte nazista impede a expressão verdadeira da unidade. Isso prova que, em razão de seu fator relacional, dificilmente haverá uma normatividade unívoca sobre a beleza.
Outro aspecto que complica nossa explicação sobre a beleza, talvez o mais relevante de todos, é que a beleza passa necessariamente pelo julgamento dos nossos sentidos. A beleza precisa de apetite sensitivo. No caso de uma pintura ou de um filme, depende dos nossos olhos. A maior parte das coisas que entendemos como belas são objetos artísticos, ritos litúrgicos, peças de teatro, musicais, paisagens: tudo que tem materialidade. Isso é problemático, pois a matéria é transitória e imanente — e não transcendente. A matéria muda o tempo inteiro, não havendo nada nela que seja fixa para sempre. Como a beleza depende desses elementos materiais para representar o que é eterno, sempre haverá algo de imperfeito e transitório em uma obra de arte. Com isso, o caráter transitório dos representantes da beleza é outro ponto que dificulta a conceituação da beleza, coisa que não acontece quando estamos tratando da verdade e da bondade — que são conceitos com um caráter mais abstrato.
Certamente há um propósito nessa neblina que envolve a definição da beleza. Talvez poderíamos pensar nessas ambiguidades como próprias do mistério divino. Deus condenou o mundo na mesma medida que amou o mundo. A matéria é respectivamente algo que devemos transcender, mas não aniquilar. Há algo de divino e de não divino nas realidades materiais e o seu julgamento depende muito da forma como olhamos para o mundo. É por isso que nossa constituição como pessoa e a formação da nossa consciência tem um peso sobremaneira na hora de percebermos e definirmos a beleza que nos circunda. Em última instância, a percepção da beleza anda de mãos dadas com a pureza do nosso olhar ao identificar o rosto de Deus nas coisas.
Faria mais sentido pensarmos na beleza não como algo externo a nós — mas como algo que cresce junto conosco, na medida em que buscamos a verdade e a bondade na vida. Se a beleza é a unidade das partes com o todo, então aqueles objetos com mais partes para serem harmonizadas necessariamente apresentarão um material mais rico para a beleza. Mais partes para serem harmonizadas indicam mais experiência da unidade no objeto. E não há nada que possua mais elementos a serem harmonizados do que a vida humana. Uma pessoa reúne nela mesma aspectos materiais, divinos e psicológicos, contando com uma composição de corpo, alma e espírito que é absolutamente única. Isso quer dizer que o ser humano, quando alcança a harmonia, torna-se a obra de arte mais bela que existe.
Imagine que você vai ouvir a música de um artista desconhecido e, quando aperta o play, depara-se com um monte de ruído desagradável. Os ruídos seguem por muitos minutos fazendo daquela experiência algo insuportável. Porém, no meio desses minutos excruciantes, há um intervalo de 10 segundos de uma melodia maravilhosa. Cessando esse intervalo, voltam os ruídos. Com isso, poderíamos dizer que existia algo de belo naquela obra, mas não que ela é bela como um todo — pois a canção não apresenta a tal da harmonia das partes com o todo.
O mesmo se dá com a vida humana: pensemos em um grande artista que produziu obras geniais em um período de sua vida, mas foi um desastre em todo o resto. Apesar de uma obra genial, suas ações como pessoa não refletem em nada a harmonia das partes com o todo. Poderiam chamar essa vida de bela? Não exatamente: apesar de algumas coisas boas, ela gerou ruído quase que o tempo inteiro. Assim, só podemos considerar uma vida exemplar quando ela é, de fato, harmônica. Uma vida sem unidade não é uma vida bela, por maior que seja a genialidade de uma ou outra obra A beleza do homem consiste, portanto, na unidade de vida. Unidade de vida passa por harmonia em suas mais diversas áreas: da família às finanças, nas amizades e principalmente na vida espiritual. A isso podemos dar o nome de vida plena ou, em outras palavras, de vida santa.
Não à toa — e como forma de coroamento desse tema — é a vida santa o principal objeto de referência para as produções artísticas e estéticas que pretendem apurar e transmitir a beleza. Não há nada que tenha sido representado artisticamente em maior quantidade e qualidade, na história da humanidade, do que Jesus Cristo. As maiores obras de arte estão relacionadas a Ele. E se adicionarmos a vida dos santos — homens e mulheres que viveram o exemplo de Cristo —, teremos uma temática com uma maior quantidade e qualidade ainda. Pense em todas as obras de arte, igrejas, peças musicais e objetos que já foram criados tendo como referência a vida de Jesus e dos santos.
Não há nada com mais valor do que as representações conectadas a esse tema. Isso porque a vida santa inspira a arte para que, através dela, seja inspirada a vida comum. E essa vida comum, inspirada pela beleza, pode se tornar uma vida santa — e essa vida santa se torna, por sua vez, em um objeto de arte. Passo a passo, esses círculos concêntricos vão aumentando. E, com isso, cresce também a arca de tesouros de beleza da humanidade.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.
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