O intenso, profundo e detalhado noticiário sobre a delação ou colaboração premiada dos sócios da empresa J&F levantou enormes dúvidas relacionadas às práticas políticas, de negócios e do funcionamento da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Como tudo que se conta precisa ser provado, depois de intenso bombardeio não veio a terra arrasada. De fato, feneceram as impressões de se estar diante de denúncias capazes de extinguir a galáxia – afinal, o fim do mundo foi prometido com as revelações da Odebrecht. Para a sociedade, restou a impressão de os abalos se restringirem a suspeitas sobre o uso do banco oficial de fomento econômico como instrumento à busca de recursos para campanhas políticas. Mas a ideia – aventada por muitos – de que nada mudou é imprecisa.
A forma como foi estruturada a delação da J&F, o que saiu até o momento na imprensa e o nível das pessoas envolvidas na reviravolta dos fatos têm, sim, a capacidade de gerar dúvida sobre a eficácia e a continuidade do instituto da colaboração premiada. Mas apenas para quem se atém à interpretação do que é coberto pela mídia. O objetivo, a estrutura e os meios para atração de colaborações premiadas permanecem incólumes.
O objetivo, a estrutura e os meios para atração de colaborações premiadas permanecem incólumes
Como a Lei Anticorrupção e os acordos de leniência, as delações premiadas são figuras novas na legislação. Suas aplicações foram intensificadas no rol de escândalos a partir da Operação Lava Jato. Das reservas quanto ao seu uso passou-se – num tempo bem curto – para o entendimento de ser ferramenta legítima para estratégias de defesa. A jurisprudência está sendo construída pela cauda longa da Justiça.
Essa cauda compreende a sua aplicação em milhares de casos por todo o país. Processos que mal conseguirão chegar aos blogs de comunicação das localidades onde ocorrem, mas para os quais as autoridades públicas têm a obrigação de apurar e, diante de indícios, instaurar inquéritos, apresentar denúncia e dar andamento ao devido processo legal. O instrumento está sendo usado cada vez mais intensamente.
Um aspecto fundamental que precisa ser mais e melhor informado se refere à intenção natural da delação premiada combinada com os acordos de leniência e a legislação contra atos de corrupção. A aplicação da justiça não deve gerar danos que punam além dos culpados. Isso significa, muitas vezes, aplicar a lei apenas sobre as pessoas responsáveis pelos atos criminosos, evitando-se ampliar os prejuízos econômicos decorrentes destes processos para a empresa e toda a cadeia de fornecedores envolvida.
Leia também: A legitimidade dos acordos de delação premiada (editorial de 2 de julho de 2017)
Leia também: As contradições dos que criticam a delação premiada (artigo de Bruno Calabrich, publicado em 3 de fevereiro de 2016)
A aplicação de multas relevantes e a exigência de aplicação de ambiente livre das influências que levaram a práticas ilegais são as virtudes de casos como o da gigante alemã Siemens. Não deixaram quebrar, preservaram empregos, afastaram os responsáveis, criaram uma nova realidade.
A legislação brasileira tem o mesmo intuito e estabelece mecanismos capazes de fazer o mesmo. Precisamos apenas saber como cumprir isso. Se não o fizermos, o problema não será se o estatuto legal funciona ou não. Mas saber as razões de por que nós, operadores do direito e aplicadores da Justiça, não conseguimos fazer que funcione. Esta mudança depende mais do que temos como objetivo de longo prazo enquanto compromissos com o país do que de interesses que influenciam no momento da adoção das medidas judiciais.