Falácias não são simplesmente ideias malucas. Geralmente são plausíveis e lógicas – mas com alguma coisa faltando. Essa, que é a frase de abertura do livro Fatos e Falácias da Economia, do professor Thomas Sowell, me acompanhou desde o início da leitura do livro e permeou meus pensamentos ao longo de minha rotina que, por envolver o direito brasileiro, é terreno fértil para falácias ou, ainda, para coisas que parecem prováveis, mas que escondem um universo. É triste admitir, mas as falácias criam raízes em todas as fontes do direito, na doutrina, na legislação, na jurisprudência e até nos costumes.
O caso mais simbólico me veio na forma de sentença, especificamente a da cassação do deputado federal do Paraná, Deltan Dallagnol, que ficou conhecido no país por repatriar bilhões de reais desviados em corrupção em anos recentes. O fundamento utilizado na decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral passou longe do texto legal, ficando excessivamente imersa em um exercício de futurologia que destoa da neutralidade e imparcialidade que se espera de qualquer órgão pertencente ao Poder Judiciário.
O Judiciário é o farmacêutico que lê a prescrição médica, compreendendo-a e fornecendo o remédio. Contudo, quem prescreve o remédio é a legislação – e somente ela.
Em síntese, a decisão entende que apesar de existir certidão expedida pelo Conselho Nacional do Ministério Público, atestando a inexistência de processo administrativo disciplinar (PAD) contra o deputado federal mais votado de uma das unidades da Federação à época da sua exoneração, ele ainda pode ser cassado com base em um dispositivo da Lei da Ficha Limpa. A referida lei afirma que são inelegíveis aqueles que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar. O entendimento do TSE foi o de que haviam procedimentos de outra natureza que poderiam virar PADs (muitos já haviam sido rejeitados em primeiro grau) e que o deputado poderia ter se exonerado para evitar os possíveis PADs. Exposto dessa maneira, se torna bastante claro o arbítrio praticado e o que a decisão oculta, uma lesão à legalidade, à democracia e à República.
A lesão à legalidade é bastante óbvia, bastando que se leia o enunciado e o documento expedido pelo CNMP, dotado de fé pública e jamais contestado, para que se compreenda que o fato não amolda à norma. Não bastasse isso, a decisão também inova nas possibilidades de perda do mandato, à revelia do que dispõe o § 9º do art. 14 da Constituição, que estabelece que somente lei complementar poderá estabelecer casos de inelegibilidade a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Por outro lado, a lesão à democracia também parece bastante evidente, a Câmara dos Deputados é a Casa Legislativa responsável pela representação popular enquanto o Senado Federal representa os Estados e o Distrito Federal, conforme o art. 46 da Constituição da República. Assim, cassar o mandato de deputado federal, conferido por trezentos e quarenta e quatro mil novecentos e dezessete eleitores paranaenses me parece tolher o poder do povo e, portanto, ser antidemocrático.
Por último, a lesão à República demanda um pouco mais de reflexão. A manutenção da república brasileira passa necessariamente por uma dimensão de harmonia e respeito à independência entre os Poderes, é isso que está assegurado no art. 2º da CR/88. Trocando em miúdos, cada um no seu quadrado. O produto do Executivo é a execução das políticas públicas; o produto do Legislativo são os projetos leis – que se tornarão leis se sancionados pelo Executivo ou promulgados pelo Legislativo – e a tão esquecida fiscalização e, por fim; o produto do Judiciário são as sentenças e as decisões.
Não cabe ao julgador decidir com fundamento em futurologia, em um mundo de coisas que poderiam ter sido, como ocorreu no caso Deltan Dallagnol.
Nessa lógica, o Legislativo delibera (do latim deliberare, que significa resolve, decide) por maioria sobre um projeto de lei que, após, vai para a sanção. Em sua origem, a palavra sanção significava “tornar puro” e só depois que o direito se apropriou culturalmente desse conceito originalmente religioso é que se passou a entender que sanção seria “tornar conforme a lei” ou “tornar conforme o direito”. Em que pese hoje se associe muito com castigo, faz-se necessário retomar o sentido original da palavra para que se compreenda até onde vai o papel constitucional de cada Poder. Se o Executivo sanciona o projeto de lei do Legislativo, significa que ele estabeleceu o parâmetro da lei ou, no sentido original, o parâmetro da pureza, para determinada população.
É desse parâmetro que nasce o papel constitucional do Poder Judiciário. É a partir dessa autorização entre os outros dois Poderes da República que o Judiciário pode pegar casos concretos e emitir sentenças ou, em outras palavras, pode exarar o seu sentir sobre quais as sanções, necessárias para tornar determinada conduta conforme o direito.
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Em um paralelo com o cotidiano, o Judiciário é o farmacêutico que lê a prescrição médica, compreendendo-a adequadamente e fornecendo o remédio. Contudo, quem avalia a condição e prescreve o remédio é a legislação – e somente ela. Um medicamento não prescrito é tão somente um veneno aleatório, tal qual uma decisão judicial que se afasta da régua estabelecida pela lei sancionada é nociva ao direito e não pode ser remédio para tornar algo puro. Não pode ser sanção.
É justamente por isso que não cabe ao julgador decidir com fundamento em futurologia, em um mundo de coisas que poderiam ter sido, mas que não necessariamente são e que residem, tão somente, no futuro do pretérito. Se as coisas são impuras de acordo com o direito, é necessária uma sanção e, se não são impuras, não há que mexer-se nelas através do manejo do Sistema de Justiça. No caso concreto, infelizmente, me parece que a Corte Superior Eleitoral apresentou uma falácia que esconde elementos extremamente lesivos ao direito e às instituições, falhando na missão de emitir sanção e entregando para a população tão somente uma cassação, que muito mais contamina do que purifica.
Gustavo Fernandes, advogado formado pela Faculdade de Direito Escola Superior do Ministério Público (FMP-RS), é sócio fundador da Fernandes, Fochesatto & Provin Advocacia, ex-presidente e conselheiro do Instituto Atlantos e associado do Instituto de Estudos Empresariais. Coordenou os trabalhos da Comissão Especial de Revisão Legislativa de Porto Alegre (RS).
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