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A finalidade precípua da democracia é a preservação plena da liberdade. Por isso nela foi criada um Constituição Federal para proteger o cidadão de qualquer realidade que se imponha como ameaça contra os seus do cidadão. Mas, na prática, o que se verifica na atual conjuntura brasileira é o flagrante derretimento do Estado Democrático de Direito. O que está em jogo é o futuro moral da cidadania. São valores fundantes dessa ordem social, portanto, as liberdades individuais da pessoa-cidadã. No Brasil contemporâneo, contudo, ela está sendo ameaça pela institucionalização de uma desordem democrática que a tem concedida o status de uma utopia. É sobre esse tema complexo que pretendo me deter.
Diante de uma democracia que tenta se afirmar como tal sem ter na liberdade sua matriz operacional, se torna inevitável confrontá-la com uma pergunta. Afinal de contas, o Brasil ainda é um país democrático? A resposta pode parecer confusa, mas reflete realidade brasileira atual: o Brasil é democrático em parte sim e, em parte, não. Infelizmente, a face antidemocrática da política brasileira emergiu no contexto da pandemia Covid 19. No atual momento, a democracia brasileira vive o seu momento mais dramático: a incerteza quanto ao futuro político da nação.
O cidadão brasileiro em geral, por ocasião da pandemia Covid 19, se sentiu tolhido em sua liberdade e desqualificado em sua capacidade crítica de assumir responsavelmente as próprias escolhas.
Falsos apologetas da democracia a defendem ao mesmo tempo em que prometem sacrificar liberdades fundamentais dos cidadãos. Democracia sem liberdade é como um corpo sem coração. Ela está para a liberdade assim como o oxigênio está para o pulmão. Dessa analogia se quer afirmar que sem liberdade a democracia perde sua vitalidade. As liberdades devem ser compreendidas como “garantias invioláveis”. No entanto, com a fragilização dos direitos e das garantias constitucionais, brasileiros, em sua maioria, estão tomando consciênciade que sua liberdade foi transformada num bem social subvalorizado. Para cidadãos que se compreendiam portadores de uma racionalidade ponderativa e auto diretiva, o conceito de democracia parece ter caído em descaso, infelizmente.
O cidadão brasileiro em geral, por ocasião da pandemia Covid 19, se sentiu tolhido em sua liberdade e desqualificado em sua capacidade crítica de assumir responsavelmente as próprias escolhas. Parece que, ao reinterpretar a Constituição Federal, autoridades do Judiciário alteraram o sentido de certos direitos fundamentais e deram a entender que determinadas garantias haviam perdido sua validade legal à luz da nova situação da pandemia. Isso criou um rebuliço na sociedade. A desordem democrática se instalou nesse contexto, quando as mesmas autoridades do Judiciário parecem ter resolvido suspender temporariamente certos direitos invioláveis, legitimando a caça desregrada das liberdades essenciais.
Os que cercearam direitos e garantias fundamentais do cidadão foram os mesmos que se mostraram incompetentes para analisar hermeneuticamente o sentido dos conceitos de vontade, escolha e liberdade humanas numa sociedade democrática. Afinal, quando esses conceitos são mencionados, se deve ter em mente que eles estão interligados por um processo ponderativo que desemboca no ato de seleção das possibilidades existentes num ambiente social repleto de interesses em conflito. Se as decisões que se fazem são de natureza moral, o acesso a elas deve se dar pela via de uma reflexão ética através da qual a ponderação da vontade do eu-pessoa realiza o poder de escolhas frente a um horizonte plural de possibilidades morais que existem.
Todo esse processo hermenêutico foi ignorado pelas autoridades do Judiciário mencionadas anteriormente. A consequência foi o colapso geral que se instaurou ao provocar uma inversão funcional de competências institucionais. Quem deveria proteger as garantias constitucionais do cidadão começou a persegui-las, em alguns casos com o uso de violências (física, moral e simbólica). Desconsideram a democracia como o regime social no qual toda ação moral deve ser precedida por uma prévia reflexão ética. É por isso que a pessoa humana, no contexto de uma sociedade democrática, deve ser respeitada como um cidadão intelectualmente competente.
Suprimir um direito natural/fundamental da pessoa humana como o da liberdade foi, no mínimo, um ato que ignorou o cidadão como um ente moral.
Sabe-se que a democracia só funciona numa sociedade na qual o cidadão é capaz de exercer sua vontade em cada ato de escolha que faz. A escolha da vontade, para se tornar uma escolha moral (responsável), deve se sujeitar a uma lógica de ponderação através da qual a pessoa-cidadão toma uma decisão conscienciosa. É certo que toda escolha que a vontade livre realiza deve ser reconhecida por conta de sua natureza ponderativo-moral: reflito, logo decido. Infelizmente, muitas autoridades do Judiciário e do Congresso Nacional ignoraram isso.
A desordem democrática se tornou uma realidade quando esse entendimento foi prescindido. Não se pode ignorar que a ida de Jair Bolsonaro ao cargo de presidente do Brasil foi consequência de uma vontade coletiva que ponderou possibilidades e obedeceu ao processo legal-democrático a fim de elegê-lo. Não aceitar esse fato implica dar início a um princípio de inversão política numa sociedade que, na prática, se tornou pós-democrática.
A ingovernabilidade parcial do Executivo parece ter demonstrado isso nos últimos três anos e meio. O Poder Judiciário assumiu o protagonismo da cena política, ofuscando, assim, muitas das ações de gestão que são de competência exclusiva do Poder Executivo. Mas o Poder Legislativo também vem sofrendo com esse protagonismo do Judiciário com seu ativismo político. No entanto, o que de mais grave parece ter ocorrido no período da pandemia Covid -19 foi a decisão do Judiciário de tirar do cidadão sua competência ética de exercer a ponderabilidade ética fundamentada no senso moral que lhe é constitutivo como pessoa humana e cidadão. Afinal, o conceito de ordem pressupõe a organização moral do espaço democrático das diferenças (sua moralização).
Entretanto, a ideia que se impingiu na época citada sugeria que o cidadão era racionalmente incapaz de distinguir o certo do errado ou bem do mal. Para facultar à liberdade (direito natural) ao cidadão, a democracia tem que reconhecê-lo com um agente moral e racionalmente competente para realizar mobilidade de diversas naturezas no mundo da vida.
A organização dos pensamentos, com o objetivo de realizar uma análise crítica das diferentes naturezas de cada escolha moral feita na esfera da vida democrática, pressupõe que o cidadão é um ente social dotado de racionalidade ética. Esse é um princípio racional da ordem democrática. Se se admite de modo relativamente consensual que a democracia não é um sistema de controle, mas de valorização da liberdade a partir da qual cada cidadão exercita sua faculdade mental de discernimento moral, então não há como negar que, no contexto do período da pandemia várias instituições que se intitulam democráticas iniciaram um movimento que passou a negar essa condição da pessoa e cidadão brasileiros. Elas agiram como agências de controle de forma ilegítima.
Suprimir um direito natural/fundamental da pessoa humana como o da liberdade foi, no mínimo, um ato que ignorou o cidadão como um ente moral que pensa antes de exercer qualquer escolha da vontade. Nada justifica a política de imposição numa democracia sadia. Os brasileiros devem ser respeitados em sua condição cidadã, invariavelmente. A civilização da ordem exige o respeito a esse status de cidadão. Do contrário, o quadro cultural que se instaura num espaço social com características adversas a essa é o que define o espírito da desordem democrática.
Diante de tudo isso emerge, de forma retumbante, a pergunta: o Brasil ainda é um país democrático? A resposta é: Sim! O Brasil parece que ainda é um país democrático. No entanto, essa democracia se encontra em estado disfuncional. O espírito da desordem tratado nesse tópico representa, grosso modo, uma inversão funcional da moral no contexto atual da nação. Tal inversão é de natureza axiológica. O valor mais fundamental da democracia – a liberdade – está sendo banido da vida social. E por qual motivo? A resposta parece ser uma ofensa à democracia, mas muitos estão sugerindo que a liberdade se tornou uma ameaça para a segurança nacional.
O modelo de democracia que se quer impor agora vem associado à política de controle social. O cidadão está cada vez menos livre nessa nova configuração de democracia do controle que se quer fundar no Brasil. A relação entre valor e função da liberdade perdeu relevância nesse contexto. O errado virou o certo, e o correto se tornou condenável. A nova versão de democracia quer repotenciar e ampliar a política dos limites operacionais do Estado. O cidadão está ficando cada vez menos sem suas garantias essenciais. O Estado está se tornando um verdadeiro intruso na vida privada do cidadão, desrespeitando os limites invioláveis dos direitos garantidos por lei a ele.
Infelizmente, a liberdade está se tornando uma espécie de utopia no contexto da atual distopia que se vislumbra no horizonte político da nação brasileira.
O cenário da desordem democrática ganha feição de insegurança ontológica na qual está se instaurando uma guerra entre os cidadãos e as instituições que deveriam trabalhar em unidade operacional com eles. Nesse contexto confuso, não se tem mais em mente qual será o futuro do cidadão num país como o Brasil. Ao retrair a mobilidade da liberdade do indivíduo neste contexto, a desordem está produzindo um sentimento generalizado de pânico social, medo exacerbado de ter entrado numa configuração axiológica definida como um beco sem saída.
A democracia adoeceu e seu valor vital foi enfraquecido. A liberdade já não está presente na realidade cotidiana do cidadão por conta de uma ameaça que sonda a vida do mesmo e promete instituir num futuro uma rigorosa política do controle. Depois do advento da pandemia de Covid-19, a democracia foi duramente atingida pela ameaça de uma retração ontológica da liberdade. Esta retração da autonomia da vontade pode representar a morte definitiva do cidadão.
A liberdade é um conceito que preconiza a ideia de emancipação moral da vontade do eu-pessoa na esfera social. A modernidade deu a ela um sentido político: liberdade produz mobilidade da pessoa que passa a ser considerada sujeito da própria história. Nesse sentido, a vontade livre deve ser entendida como uma variável psicoantropológica que produz a esperança de uma transformação histórica da vida. A liberdade faz lembrar a experiência histórica de emancipação política do povo de Israel do jugo do Egito. Ao reportar a ela, a memória das tradições do povo judeu evoca a imagem de travessia do povo de Deus pelo Mar Vermelho em direção à terra prometida de Canaã.
Aqui, portanto, se reforça a unidade operacional da liberdade e esperança. Isso implica a obtenção do poder para exercer escolhas de forma autônoma e escrever a história de uma nação livre. A ideia de liberdade que liberta também cabia perfeitamente no mapa imaginário da fé cristã. Essa não teria como elemento motivacional uma situação política por trás determinando o horizonte da esperança que se despontava originalmente em perspectiva escatológica. No entanto, a expressão paulina que diz: “pois foi para liberdade que Cristo vos libertou” (Gl 5,1) sugere uma compreensão semelhante à ideia que tinha o povo de Israel na saída do antigo Egito. E como se entendia a liberdade então? De status psico moral em que o arbítrio do eu não podia exercer a escolha eticamente correta (Rm 7,19) a uma condição favorável na qual agora seria possível à execução da vontade do eu para a realização do bem moral.
Esse ideal da liberdade está sob suspeição no contexto do Brasil pandemia e pós-pandemia. Infelizmente, querer e poder são variáveis da vida moral que estão dissociadas da condição cidadã hoje no Brasil. O grande drama que está sendo posto aqui e agora é a intimidação velada – mas real – colocada contra esse cidadão de bem. E que risco real há nisto? A resposta parece óbvia: a do cidadão perder definitivamente o horizonte moral de sua condição como agente moral livre, com a esperança fragilizada e se tornando cada vez mais incapaz de se apresentar como uma força de transformação histórica da vida.
Infelizmente, a liberdade está se tornando uma espécie de utopia no contexto da atual distopia que se vislumbra no horizonte político da nação brasileira. A utopia se traduz por fantasia, ilusão, quimera, miragem e alucinação. No sentido marxista/neomarxista, ela tem sido preconizada como um conceito que aponta para um lugar caracterizado como estado ideal das coisas, e da plena realização da felicidade e harmonia entre os indivíduos que coexistem na sociedade.
A construção discursiva desse engodo segue o seguinte raciocínio básico. A planificação social das classes é o maior evento que se espera e para o qual se projeta a ponta da lança utópica dessa expectativa do marxismo, segundo a crítica do autor de A sociedade aberta e seus inimigos, Karl Popper. O discurso profético recorrente que é emblema dessa utopia é sempre o mesmo: “é preciso acabar com a desigualdade social”. Para isto, a liberdade deve deixar de existir obviamente. Socialismo e liberdade, portanto, são valores que se contradizem.
Cabe esperar, contudo, essa utopia concreta emergir de uma sociedade distópica. A estratégia política parece conhecida de quase todos: estabelecer uma política de controle social que visa alcançar o silêncio definitivo da voz de um povo que vive sob jugo político de uma vertente cultural antidemocrática. E sem a liberdade do cidadão, um governo déspota haverá de monopolizar a violência (de forma radical) e sujeitar uma nação inteira a abdicar da esperança de sua própria transformação social e histórica.
Essa compreensão é equivocada. Ela promete pôr fim à desigualdade social às custas da supressão moral da liberdade. Porém, a verdade é que a desigualdade social só pode ser mitigada se o Estado fomenta condições e possibilidades aos indivíduos que, ao fazerem uso pleno de sua liberdade, alcance seu próprio êxodo pessoal como cidadão. Diga-se de passagem, pois, que é ideal da democracia, desde a sua origem, a igualdade de oportunidade para todos os cidadãos. Sem a liberdade, o ideal democrático de construção da esperança e da justiça para o cidadão não se tornará realidade no Brasil.
Infelizmente, o poder de escolha do cidadão lhe está sendo tirado. Cada vez mais ele se torna menos representado pelas instituições que se consideram legitimamente democráticas. Considerando que a luta contra a desigualdade social é, na verdade, uma desculpa para se retirar da realidade social brasileira a liberdade humana, então chegou a hora de desmascarar as verdadeiras pretensões de ala política antidemocrática que sobrevive apenas dos nutrientes cancerígenos da mentira e da maldade. A pauta do controle social ganha cada vez mais notoriedades nos discursos de todos aqueles que, de fato e de verdade, nunca valorizaram a liberdade como um tesouro a ser protegido.
Por essa razão a liberdade vem ganhando cada vez mais status de um fenômeno utópico. A utopia é sempre inferida de uma realidade que consta exatamente a sua ausência. Esse sentido do não-lugar coloca o horizonte que ela indica como sendo uma realidade de natureza ilusória. Neste caso, a utopia da liberdade é um construto que indica uma promessa que se encontra num lugar inacessível situado num futuro inalcançável. Por essa razão ela é entendida de modo negativo. Daí a utopia ser preconizada como uma falsa promessa que não tem na história humana qualquer pretensão de fazer a sua morada.
Essa compreensão reforça a percepção de que a liberdade hoje está se afirmando numa realidade exatamente pela via do paradoxo, pela via da sua ausência. Clama-se pela presença dela justamente porque agora ela parece estar ausente de uma maioria de cidadãos. Por isso a liberdade se tornou utopia: quanto mais dela se fala, tanto mais ela some do horizonte histórico e imediato de cada cidadão brasileiro de bem. Essa é a maior de todas as ameaças contra a democracia verdadeira.
É preciso eleger a liberdade como componente de decisão moral determinante da vida social de cada cidadão. Por meio dela se entende que a sociedade brasileira como um todo se solidificará como uma organização social legítima e verdadeiramente democrática, que progrida com justiça numa ordem moral que respeite as liberdades do cidadão. Sem a liberdade como princípio, o ideal de ordem e progresso se dilui como uma meta civilizatória na qual a vontade livre deve ser entendida como um meio e um fim do modo de ser de cada cidadão.
Anderson Clayton Pires é doutor em Sociologia e em Teologia e Hermenêutica, pastor luterano e professor.