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O documentário Democracia em vertigem, de Petra Costa, cineasta mineira de 35 anos, estreou em 19 de junho, buscando construir uma narrativa acerca dos últimos acontecimentos políticos do Brasil. Neta dos fundadores de uma das maiores construtoras do país – a Andrade Gutierrez, envolvida nos processos de corrupção que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff – e filha de dois ativistas de esquerda dos anos 70, a diretora narra os fatos a partir da perspectiva de uma militante desiludida pela derrota de seus ícones políticos.
O documentário utilizou-se fartamente de recursos audiovisuais para endossar sua narrativa e conduzir o telespectador por uma suposta decadência do processo democrático brasileiro. Nas entrevistas de rua, o foco das filmagens estava sempre nas figuras mais caricatas, tomadas sob uma perspectiva claramente maniqueísta.
De um lado, saltam aos olhos o homem branco, de meia idade, vestindo a camisa da seleção brasileira, pedindo o fim da democracia, clamando pela volta dos militares e destilando preconceitos. Desaparecem os cartazes contra a corrupção, daqueles que pediram o equilíbrio das contas fiscais, dos que questionaram o financiamento dos portos e obras faraônicas em países governados por ditaduras africanas e latino-americanas. Desaparecem os bilhões devolvidos aos cofres públicos pela Lava Jato e o ineditismo que contraria o cerne do discurso da esquerda: não eram apenas pobres e pretos sendo presos pela polícia; finalmente víamos empresários e políticos pagando por seus crimes.
O processo democrático segue intacto; o orgulho da esquerda é que está trincado
Por outro lado, nas manifestações pró-PT, emergem as lágrimas e a emoção genuína. O foco são os manifestantes que enxergam em Lula um redentor, uma figura paterna, amável e imaculada de bondade e ternura. Há uma, em particular, de dois pipoqueiros fugindo do gás lacrimogêneo: o ranger da roda do carrinho de pipoca, a expressão simples e sofrida são comoventes e atendem ao interesse da construção narrativa.
A imagem que emerge é do negro, pobre, desiludido com o jogo sujo da estrutura de poder que afastou injustamente uma presidente honesta e prendeu um homem de bem. Desaparecem as vultosas somas de dinheiro desviadas pelo PT e aliados. O "golpe" parece ter sido movido por uma elite branca amargurada pela ascensão do mais pobre.
Estranhamente, o maior atentado contra o processo democrático de 2018, a tentativa de assassinato de Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, arquitetado por um militante de esquerda na véspera das eleições, não foi nem sequer mencionado.
Ao fim, a Esquadrilha da Fumaça corta os céus da Esplanada dos Ministérios enquanto Michel Temer passa a faixa presidencial para Bolsonaro, sob uma trilha sonora carregadamente sombria e melancólica. Caso fosse filmada em preto e branco, lembraria a ascensão do partido nazista enquanto a Luftwaffe sobrevoa os céus de Berlim. Em contraste com a imagem de pessoas humildes em lágrimas e pipoqueiros fugindo de gás lacrimogêneo, a esquadrilha parece prestes a bombardear as periferias do país com gás Zyklon B, atendendo aos anseios do "governo fascista recém-eleito e da elite branca e preconceituosa que o conduziu ao poder".
O fato, entretanto, é que assistimos, nas três últimas décadas, a processos eleitorais regulares, legítimos, ininterruptos e que ocorreram sob a supervisão de instituições democráticas sólidas, fiscalizadas por uma imprensa livre e sob o olhar atento de uma população profundamente dividida. Foi, aliás, a solidez desse sistema que permitiu que presidentes ideologicamente opostos tomassem posse e se sucedessem no Palácio do Planalto sem rupturas do tecido social.
Assim, o título grandiloquente Democracia em vertigem confunde democracia com paixão partidária. Petra Costa interpreta a quebra do discurso hegemônico da esquerda como um risco para a democracia.
O processo democrático segue intacto; o orgulho da esquerda é que está trincado.
Igor Guedes é bacharel (Ufop) e mestre em História (Ufjf).