O Congresso Nacional derrubou o veto do presidente da República ao marco temporal das terras indígenas. Esse marco temporal foi colocado em lei para interpretar o artigo 231 da Constituição. A meu ver, o Congresso fez o que devia ter feito, porque, de rigor, a referida lei respeita rigorosamente à Constituição.
O artigo 231 da Constituição diz o seguinte: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. (Grifo meu).
Como é possível perceber, quando se discutiu na Constituinte – acompanhei de perto essas discussões –, o que se pretendia é que todas aquelas terras possuídas pelos indígenas, naquele momento, teriam que a eles pertencer, não podendo ser desapropriadas nem ficar na mão de terceiros. As terras que eles “ocupam” – presente do indicativo – eram as terras a que eles tinham direito, e não terras que ocuparam há 100 ou 200 anos, nem há muito tempo e que não ocupavam mais. Até porque, se não fosse esse marco temporal pretendido pelos Constituintes, estes teriam determinado algum outro. Ao contrário, deram a todos os índios brasileiros, o direito de ficar com aquelas terras ocupadas quando da promulgação da Constituição − e quando eu digo terras, refiro-me não só às malocas, mas também àquelas redondezas, como, por exemplo, onde pescavam, enfim, aquelas terras que representam o seu habitat. Por isso é que eles puseram ocupam e não ocuparam. Foi, pois, o que os Constituintes decidiram.
O que pretendeu o presidente Lula, em seu primeiro mandato, com a decisão da Suprema Corte, é que, entre 13% e 15% do território nacional, fossem dedicados a 1 milhão de indígenas e os outros 85% dedicados a 206 milhões de brasileiros. Quando se discutia o artigo 231, na Constituinte, a avaliação é de que o Brasil deveria ter 250 mil indígenas. No momento em que se decidiu que as etnias é que definiriam, e não o local de nascimento, as terras que eles ocupavam, nós tivemos uma multiplicação dessas etnias, que estavam no Paraguai, no Peru, na Colômbia, e passaram a vir para o Brasil, pois aqui passaram a ter uma legislação que os protegia, algo que não ocorria em seus países.
Já o Congresso fez o seguinte: estamos reproduzindo em lei ordinária o que está no artigo 231 sobre o marco temporal e o presidente Lula vetou, porque queria que todas as terras que, no passado, ocuparam – que representariam em torno de 15% do território nacional –, fossem entregues a mais ou menos 1 milhão de indígenas, cabendo aos outros 85% a 206 milhões de brasileiros. É contra isso, também, que o Senado contesta o Supremo Tribunal Federal que também pretendeu o marco temporal alargado. Nesse particular, quando foi feita uma homenagem ao ministro Marco Aurélio de Mello, uma plêiade de juristas escreveu dois livros em sua homenagem, e eu também o fiz. O meu escrito defendeu a posição muito clara do ministro Marco Aurélio, dizendo o seguinte: só podemos interpretar o que está escrito na Constituição. Onde está escrito ocupam, é ocupam naquele momento, e não ocuparam num passado distante.
Parece-me, portanto, que o Congresso, ao derrubar o veto do presidente, respeita rigorosamente o disposto no artigo 231, sem prejuízo nenhum ao direito de todos os indígenas de terem aquelas terras nas quais, naquele momento em que a Constituição foi promulgada, estavam vivendo. Esta é a minha posição, rigorosamente de acordo com a do ministro Marco Aurélio, com o Congresso Nacional quando definiu o marco temporal das terras indígenas e com os Constituintes de 88.
Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
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