Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
artigo

Des-humanização de Curitiba: a desconstrução da saúde mental no SUS

 | ANDRE RODRIGUES/ANDRE RODRIGUES
(Foto: ANDRE RODRIGUES/ANDRE RODRIGUES)

A desconstrução da rede de serviços de Saúde Mental em curso no Sistema Único de Saúde (SUS) em Curitiba é um retrocesso que deve ser debatido publicamente. Sob o argumento da austeridade, a atual gestão da Prefeitura Municipal está interrompendo programas bem-sucedidos e planejando unificar, numa mesma modalidade de atendimento, os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS), CAPS-AD (álcool e drogas) e CAPS-TM (transtorno mental), que hoje funcionam separadamente. A medida tende a dificultar o acesso dos usuários de substâncias psicoativas e de portadores de transtorno mental grave aos serviços de saúde, fragilizando vínculos e reduzindo a eficácia terapêutica.

Como consequência, é previsível a ampliação da duração de tratamentos, aumento de emergências psiquiátricas e de necessidade de hospitalizações, provocando alto custo humano, social e econômico. O psiquiatra Daniel Vigo, em seu artigo científico “Estimating the true global burden of mental illness”, para o The Lancet Psychiatry, mostra que, de acordo com as estimativas, 32,4% da carga de doenças no mundo e 13% das mortes prematuras em todo o mundo se devem a distúrbios mentais.

É o retorno de uma privatização disfarçada, que explora perversamente a miséria humana

As práticas de cuidado para esses agravos requerem uma rede integrada de serviços especializados e equipes multiprofissionais qualificadas para promover o tratamento combinado à reabilitação social. No Brasil, estratégias inovadoras foram implementadas no sistema de saúde ao longo das últimas duas décadas para tratar transtornos mentais graves e para usuários de drogas (incluindo álcool), baseadas em princípios comuns de cuidado em liberdade, redução de danos, reinserção social e retificação dos efeitos de internações prolongadas.

Entretanto, o tratamento de usuários de drogas e dos portadores de transtornos mentais graves requer abordagens terapêuticas distintas e espaços apropriados. O cuidado às pessoas com sofrimento mental intenso envolve o manejo de sintomas psicóticos graves, atendimento a crises e a quadros de agitação, demandando espaços apropriados para convivência e reinserção social.

A assistência aos usuários de drogas, por sua vez, demanda tratamento para diminuição e interrupção do uso, manejo de recaídas, reinserção social combinada à geração de renda. Uma engenharia complexa, cujo principal desafio é facilitar o acesso e o vínculo ao sistema de saúde, reduzindo estigmas e preconceitos que levam muito frequentemente os usuários de substâncias psicoativas a não se envolverem em tratamentos regulares.

Entre os anos 2013 e 2016, Curitiba protagonizou importantes mudanças nas políticas de saúde mental e de tratamento aos usuários de drogas. Sob a marca de “uma cidade mais humana”, a Prefeitura municipalizou a rede de CAPS, transformando-os em unidades 24 horas, o que permitiu a abertura de 70 novos leitos (34 para portadores de algum tipo de dependência química, 30 para pessoas com transtornos mentais e seis exclusivos para o atendimento de crianças). Nesse período de quatro anos, foram realizadas mais de três mil internações.

Programas intersetoriais de baixo custo e importante potencial terapêutico foram implementados, como o projeto Intervidas, focado na população mais vulnerável, bem como atividades profissionalizantes para geração de renda, realizadas em parceria com os Portais do Futuro. Além disso, para aprimorar a formação profissional na área, foram criados programas de residência em psiquiatria e Saúde Mental, em parceria com renomadas instituições de ensino superior. Apesar dos inúmeros desafios, avanços consistentes foram obtidos, reconhecidos publicamente pelo Ministério Público da Saúde em Curitiba.

Diante da inflexão ocorrida após a mudança de gestão na Prefeitura de Curitiba, a interrupção de programas bem-sucedidos e de baixo custo, somados à descaracterização de serviços especializados em Saúde Mental, levanta a seguinte pergunta: essas medidas são guiadas apenas por suposta austeridade e aguda falta de sensibilidade social? Talvez não somente.

Retroceder à lógica manicomial, em que procedimentos terapêuticos igualmente simplificados e ineficazes são aplicados a pacientes com problemas distintos e complexos, eternizando tratamentos, interessa a determinados setores. Àqueles que, por muito tempo, lucraram com a exploração da doença mental, vendendo ao estado serviços precários. É o retorno de uma privatização disfarçada, que explora perversamente a miséria humana.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.