A desconstrução da rede de serviços de Saúde Mental em curso no Sistema Único de Saúde (SUS) em Curitiba é um retrocesso que deve ser debatido publicamente. Sob o argumento da austeridade, a atual gestão da Prefeitura Municipal está interrompendo programas bem-sucedidos e planejando unificar, numa mesma modalidade de atendimento, os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS), CAPS-AD (álcool e drogas) e CAPS-TM (transtorno mental), que hoje funcionam separadamente. A medida tende a dificultar o acesso dos usuários de substâncias psicoativas e de portadores de transtorno mental grave aos serviços de saúde, fragilizando vínculos e reduzindo a eficácia terapêutica.
Como consequência, é previsível a ampliação da duração de tratamentos, aumento de emergências psiquiátricas e de necessidade de hospitalizações, provocando alto custo humano, social e econômico. O psiquiatra Daniel Vigo, em seu artigo científico “Estimating the true global burden of mental illness”, para o The Lancet Psychiatry, mostra que, de acordo com as estimativas, 32,4% da carga de doenças no mundo e 13% das mortes prematuras em todo o mundo se devem a distúrbios mentais.
É o retorno de uma privatização disfarçada, que explora perversamente a miséria humana
As práticas de cuidado para esses agravos requerem uma rede integrada de serviços especializados e equipes multiprofissionais qualificadas para promover o tratamento combinado à reabilitação social. No Brasil, estratégias inovadoras foram implementadas no sistema de saúde ao longo das últimas duas décadas para tratar transtornos mentais graves e para usuários de drogas (incluindo álcool), baseadas em princípios comuns de cuidado em liberdade, redução de danos, reinserção social e retificação dos efeitos de internações prolongadas.
Entretanto, o tratamento de usuários de drogas e dos portadores de transtornos mentais graves requer abordagens terapêuticas distintas e espaços apropriados. O cuidado às pessoas com sofrimento mental intenso envolve o manejo de sintomas psicóticos graves, atendimento a crises e a quadros de agitação, demandando espaços apropriados para convivência e reinserção social.
A assistência aos usuários de drogas, por sua vez, demanda tratamento para diminuição e interrupção do uso, manejo de recaídas, reinserção social combinada à geração de renda. Uma engenharia complexa, cujo principal desafio é facilitar o acesso e o vínculo ao sistema de saúde, reduzindo estigmas e preconceitos que levam muito frequentemente os usuários de substâncias psicoativas a não se envolverem em tratamentos regulares.
Opinião da Gazeta: Uma luta que continua (editorial de 13 de janeiro de 2013)
Entre os anos 2013 e 2016, Curitiba protagonizou importantes mudanças nas políticas de saúde mental e de tratamento aos usuários de drogas. Sob a marca de “uma cidade mais humana”, a Prefeitura municipalizou a rede de CAPS, transformando-os em unidades 24 horas, o que permitiu a abertura de 70 novos leitos (34 para portadores de algum tipo de dependência química, 30 para pessoas com transtornos mentais e seis exclusivos para o atendimento de crianças). Nesse período de quatro anos, foram realizadas mais de três mil internações.
Programas intersetoriais de baixo custo e importante potencial terapêutico foram implementados, como o projeto Intervidas, focado na população mais vulnerável, bem como atividades profissionalizantes para geração de renda, realizadas em parceria com os Portais do Futuro. Além disso, para aprimorar a formação profissional na área, foram criados programas de residência em psiquiatria e Saúde Mental, em parceria com renomadas instituições de ensino superior. Apesar dos inúmeros desafios, avanços consistentes foram obtidos, reconhecidos publicamente pelo Ministério Público da Saúde em Curitiba.
Do mesmo autor: Das promessas à realidade: o SUS fecha portas em Curitiba? (artigo de Adriano Massuda, publicado em 10 de maio de 2017)
Diante da inflexão ocorrida após a mudança de gestão na Prefeitura de Curitiba, a interrupção de programas bem-sucedidos e de baixo custo, somados à descaracterização de serviços especializados em Saúde Mental, levanta a seguinte pergunta: essas medidas são guiadas apenas por suposta austeridade e aguda falta de sensibilidade social? Talvez não somente.
Retroceder à lógica manicomial, em que procedimentos terapêuticos igualmente simplificados e ineficazes são aplicados a pacientes com problemas distintos e complexos, eternizando tratamentos, interessa a determinados setores. Àqueles que, por muito tempo, lucraram com a exploração da doença mental, vendendo ao estado serviços precários. É o retorno de uma privatização disfarçada, que explora perversamente a miséria humana.
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