Atualmente, a moda no Brasil, quando se fala de transporte coletivo por ônibus, é a eletrificação da frota - ganha até da discussão sobre tarifa. Muitas cidades passaram a anunciar e até mesmo testar frotas de ônibus elétricos, apontando diversos benefícios, especialmente a redução da emissão de poluentes. Mesmo que esses veículos estejam custando o triplo do modelo a combustão, parece ser a saída para a redução do aquecimento global. No entanto, é importante lembrar que, até agora, ninguém sabe dizer com exatidão o que será feito com as baterias desses carros, que, por sinal, são altamente poluentes.
Enquanto se fala de eletrificação da frota, o país assiste a uma queda brutal no uso do transporte coletivo por ônibus. Dados recentes da Associação Nacional de Transportes Urbanos (NTU) apontam que o Brasil registrou uma redução de 44,1% nas viagens de ônibus no transporte público urbano nos últimos dez anos. Para se ter uma ideia em números reais, estamos transportando atualmente 19,1 milhões de passageiros a menos por dia em relação ao que era transportado em 2014.
Quando falamos de transporte público no Brasil, precisamos ser realistas sobre a dificuldade de implantação de modais como metrô e VLTs. Os investimentos são altíssimos, então, o ônibus continuará sendo um serviço essencial para as pessoas
Essa redução expressiva de pessoas que deixaram de utilizar o transporte coletivo tem impacto direto no custo da operação, o que resultou, nos últimos anos, na implementação, em grande parte do país, da contrapartida financeira do poder público para a sustentabilidade do funcionamento do serviço. Só com a arrecadação da tarifa não se paga mais o custo da operação do transporte coletivo. E, obviamente, neste contexto, à medida que se perde clientes do sistema, aumenta a participação financeira do ente público. Menos passageiros, mais subsídio.
É reconhecido que o pós-pandemia trouxe mudanças de hábitos, como o home office e o e-commerce, e também houve o surgimento das viagens por veículos de aplicativos, contribuindo para a redução na utilização do transporte público. Mas o ponto principal dessa crise que vive o setor de transporte coletivo não está relacionado exclusivamente à questão da tarifa; há uma ligação direta com a questão da infraestrutura viária. Quase não há prioridade nas agendas de investimentos do poder público para obras de infraestrutura que tenham impacto na mobilidade de quem utiliza ônibus diariamente.
O cidadão que depende do transporte público por ônibus pode até reclamar do valor da tarifa, o que é uma questão natural, que vai sempre estar na fala de todo trabalhador assalariado que usa o serviço, mas sua grande queixa e o motivo principal da evasão do sistema é o não cumprimento do horário e o longo tempo enfrentado dentro dos coletivos na sua rotina diária de deslocamento entre sua casa e o trabalho, e vice-versa.
Quando um usuário do transporte coletivo não tem mais a previsibilidade do horário, ele vai buscar uma forma de mudar seu modal de deslocamento e, na primeira oportunidade, comprará uma moto ou um carro. A conta, quando ele toma essa decisão, será sempre mais alta e impactará negativamente na sua renda, mas, mesmo assim, será a decisão tomada na ânsia de resolver sua necessidade, procurando atendimento aos seus compromissos sem atrasos inesperados.
Nos últimos anos, são inúmeros os congressos, seminários, pesquisas e estudos falando sobre a crise no setor do transporte público por ônibus no Brasil, todos importantes e sempre com novidades e atualizações, mas, na prática, não conseguem trazer resultados que alterem a curva da perda de usuários no serviço, simplesmente porque isso só vai acontecer se existir, de fato, a inversão de prioridade entre o transporte individual e o transporte coletivo.
Segundo a Associação dos Fabricantes de Motocicletas e Similares (Abraciclo), só no primeiro trimestre do ano de 2024, o Brasil teve mais de 1,3 milhão de motos fabricadas. Este foi o maior número de unidades dos últimos 12 anos. É uma demonstração real do avanço do transporte individual sobre o coletivo. Óbvio que não é proibido nem pecado que todo cidadão ou família possam ter seu veículo próprio, não é essa a razão do tema aqui tratado, mas sim o fato de que a infraestrutura viária oferecida para o transporte individual não é a mesma para o transporte coletivo, e, por isso, quem usa ônibus tende a chegar sempre mais tarde ou depois daqueles que estão no veículo individual, com poucas exceções.
A mudança desse paradigma e o início de uma possível recuperação do setor só será possível quando estivermos dispostos a enfrentar o custo político de colocar o ônibus na frente do carro, medida considerada impopular, especialmente no Brasil. Vamos imaginar que, em todas as vias estruturantes de uma cidade, o mesmo número de faixas de pista fosse igual para ônibus e carros. Qual seria o resultado prático disso? Muito mais velocidade e previsibilidade para os passageiros do transporte coletivo. Mas vale a pergunta: qual cidade está disposta a fazer esse enfrentamento?
Voltando ao início deste artigo: qual será a razão de se ter ônibus elétricos com um custo altíssimo se eles ficarão presos no congestionamento? E por que continuamos pensando as cidades para os carros, sem dar o devido espaço aos ônibus? Mais ainda, qual a participação do transporte coletivo como vilão nas tratativas do aquecimento global, comparado com os demais veículos?
Nestes contextos, vale destacar que, quando falamos de transporte público no Brasil, precisamos ser realistas sobre a dificuldade de implantação de modais como metrô e VLTs. Os investimentos são altíssimos, então, o ônibus continuará sendo um serviço essencial para as pessoas, principalmente as menos favorecidas, e as cidades precisam se conscientizar sobre isso.
O transporte coletivo sobre pneus tem um papel fundamental na mobilidade urbana, seja pela sua inerente flexibilidade e custo de operação, se comparado com outros modais. Uma cidade com proposta para um sistema bem planejado e executado, e com essa visão de investimentos e infraestrutura priorizando o uso coletivo, torna-se uma luz nesse desafio nacional de recuperação de um serviço tão importante para as pessoas. E essa agenda precisa urgentemente fazer parte do dia a dia dos novos governantes e das cidades brasileiras neste início de mandatos.
Gilson Santos é diretor presidente da Agência de Assuntos Metropolitanos do Paraná – AMEP.