Assunto controverso e polêmico, a descriminalização das drogas ainda divide opiniões no país. E, no Brasil, uma definição sobre o tema foi adiada novamente para 2020. A pauta seria votada na primeira semana de novembro pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas foi suspensa pelo presidente da corte, o ministro Dias Toffoli. Não há previsão de quando o assunto será retomado pelas autoridades. Vale lembrar que esse julgamento foi iniciado em 2015 e a primeira suspensão foi feita pelo então ministro Teori Zavascki, que pediu vistas do processo após três votos (de Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin) favoráveis à descriminalização.
Atualmente, nossa legislação, que já despenalizou o usuário de substâncias (retirou-se a pena privativa de liberdade do ato de consumir entorpecentes), remete-nos ao artigo 28 da Lei 11.343/06. Segundo essa determinação, é o juiz quem avalia se a quantidade de substância encontrada com um indivíduo caracteriza consumo próprio ou atividade relacionada ao tráfico. Para chegar a uma conclusão, o magistrado analisa fatores como: quantidade encontrada; o tipo de droga; o local e as condições em que houve a apreensão; além da situação pessoal, social, de conduta e antecedentes do portador da droga. As sanções impostas aos usuários hoje são: 1. advertência sobre os efeitos do uso das drogas não somente em relação à saúde do usuário, mas às consequências negativas no que se refere ao convívio social, principalmente no tocante à convivência em família; 2. prestação de serviços à comunidade; 3. frequência obrigatória em programas educativos.
Sem mudar o olhar para os dependentes e adotar políticas de prevenção e tratamento, é precoce flexibilizar as leis atuais de drogas no Brasil
Descriminalizar o uso de drogas é não imputar crime ao ato, o que seria bem diferente de legalizar, ação na qual todo o processo das drogas seria controlado pela legislação desde o plantio, passando pela produção e sua distribuição. A legalização também é bem diferente da liberalização, processo no qual todos ou certos tipos de drogas são liberadas, circulando de forma legal.
Ao que tudo indica, tendo em vista a primeira parte do julgamento sobre a descriminalização, os três ministros do STF que já votaram parecem concordar com a descriminalização da maconha e de outras drogas para uso pessoal, sem consequências legislativas. Enquanto permanecemos nesse impasse, parece importante que a opinião pública seja informada por meio de um debate técnico e científico sobre as possíveis consequências da descriminalização das drogas no nosso país.
Argumentos recentes lançados pela Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead) questionam a maturidade do Brasil para aplicar a descriminalização. São perguntas importantes: ocorrendo a descriminalização, quem vai diferenciar o traficante do usuário? Haverá uma quantidade mínima da droga para configurar o tráfico? Se houver, não será apenas uma forma de orientar os traficantes a portarem consigo pequenas quantidades? E se alguém plantar para oferecer a outrem, será considerado tráfico? Como controlar isso? Há uma instância administrativa e não policial que tenha essa função no Brasil? E não havendo uma instância administrativa, como fazer com que não seja a polícia a fazer essa diferenciação? Como criar essa instância? Quem iria se responsabilizar por isso? O Estado se omitirá de encaminhar os usuários para avaliação da necessidade de tratamento? Do contrário, quem fará isso e em que casos? Será crime vender, mas não comprar? Como fazer com que a descriminalização não seja apenas uma etapa para a legalização? Se não há pena para o uso, por que não seria legal a venda? Como a descriminalização repercute na percepção de risco quanto ao uso de drogas pela população e, em especial, para crianças e adolescentes?
No caso brasileiro, a descriminalização não pode ser implementada sem que haja qualquer planejamento estratégico previamente. À medida que se entende que o consumo das drogas é, na verdade, um grave problema de saúde pública, e não somente de justiça criminal, parece importante que possamos tentar diminuir o estigma e a discriminação contra indivíduos com transtornos por uso de substâncias. Ao mesmo tempo, é preciso investir em ações para estimular a implementação de programas efetivos de prevenção primária e de tratamento baseados em evidências científicas. Sem mudar o olhar para os dependentes e adotar políticas de prevenção e tratamento, é precoce flexibilizar as leis atuais de drogas no Brasil.
- Glamourização ideológica das drogas (artigo de Carlos Alberto Di Franco, publicado em 6 de maio de 2019)
- A importância da prevenção contra as drogas (artigo de Diana de Lima e Silva, publicado em 2 de julho de 2017)
- Drogas: compreender para combater (artigo de Flavio Tincani e João R. Iensen, publicado em 1.º de junho de 2017)
Além disso, as evidências científicas em prol da descriminalização parecem ser ainda muito frágeis. Os poucos bons estudos publicados sobre o tema mostram resultados controversos e as preocupações têm recaído sobre a diminuição da percepção de risco do uso de substâncias por adolescentes. Não adianta flexibilizar as legislações sem termos feito as "tarefas de casa" fortemente necessárias para que que o intuito inicial da descriminalização, que é proteger o usuário de drogas, seja de fato atingido. No caso da descriminalização, o poder público não poderá se omitir de fornecer tratamento e recursos necessários para aqueles que adoecem (usuários e seus familiares) com o consumo contumaz e problemático de drogas.
Outra preocupação bastante importante neste cenário está o fato de a instância da descriminalização ter um forte apelo para abrir caminhos para a futura legalização das drogas – sobre a qual certamente já temos evidências robustas de diversos prejuízos à saúde pública e custos sociais imensos. Neste contexto, as chances de que o processo da descriminalização seja falho são grandes e as mudanças estão longe de cumprir o seu propósito primário, que seria proteger o usuário de substâncias. Portanto, descriminalização das drogas sem planejamento estratégico pode não nos levar a lugar algum. O Brasil ainda não tem maturidade de políticas públicas para que esta instância ocorra num cenário ainda de carência de tratamento e prevenção primária.
Alessandra Diehl é médica psiquiatra com especialização em Dependência Química e mestrado e doutorado em Ciências, com experiência com ensaios clínicos e atuação na área de ensino, pesquisa, tratamentos e organização de serviços para dependência química, sexualidade e prevenção ao uso de álcool e outras drogas, foi presidente do Centro de Estudos Psiquiátricos Américo Bairral.