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Descriminalização do porte de drogas: o risco de caos com referendo judicial

O cultivo de qualquer variante da cannabis é proibido no Brasil pela Lei de Drogas (Lei 11.343 de 2006) (Foto: Pixabay)

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Está sendo julgado no Supremo Tribunal Federal recurso extraordinário com repercussão geral, cujo resultado poderá impactar, direta ou indiretamente, na vida dos brasileiros e causar o caos na sociedade. Que me desculpem os defensores da legalização das drogas, mesmo que somente a maconha, mas os argumentos empregados não se sustentam, não sendo razoável trazer para o debate o “sucesso” em alguns países de primeiro mundo, que estão a anos luz de desenvolvimento humano, material e social do Brasil.

E mesmo esse “sucesso” é discutível, vez que há países, como o Uruguai, com desenvolvimento social semelhante ao nosso, que a situação só piorou, havendo aumento da traficância e dos crimes a ela relacionados. Interesses de poderosos podem estar por detrás da massiva campanha, mesmo que subliminar, para a liberação da maconha.

Discute-se tanto a nível legislativo quanto a judicial a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Desde a publicação da Lei de Drogas a questão ganhou relevo e, em todas as esferas, com raras exceções, sempre foi decidido que se trata de crime. Essa lei trouxe significativas modificações no que é pertinente a crimes relacionados a drogas.

Uma das principais mudanças é que ao usuário de drogas será dado tratamento especial. Inovando nosso ordenamento jurídico, a essa pessoa poderão ser impostas penas restritivas de direitos cominadas abstratamente no tipo penal (art. 28). Não mais será possível a aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário de drogas, mas a conduta de porte de droga para consumo pessoal continua sendo considerada crime.

As penas restritivas de direitos elencadas no Código Penal são aplicadas autonomamente, não possuindo qualquer relação com as penas privativas de liberdade. Elas não são cominadas abstratamente no tipo penal. Há a substituição das penas privativas de liberdade pelas restritivas de direitos, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 44 do Código Penal. Essa substituição dar-se-á quando da imposição da pena pelo juiz na sentença, que fará uma análise da viabilidade da substituição. Todavia, nada obstante o caráter substitutivo das penas restritivas de direitos descritas no Código Penal, já podemos encontrar no Código de Trânsito Brasileiro(CTB) algumas restrições de direitos que serão aplicadas cumulativamente com a pena privativa de liberdade. Exemplos: arts. 302 e 303 do CTB.

Se é certo que o uso de drogas prejudica a saúde do usuário, o que ninguém coloca em dúvida, também é certo que ele não é o único prejudicado.

Não me convence o argumento defendido por alguns doutrinadores de que o porte de drogas para consumo pessoal, bem como a semeadura, cultivo ou colheita de plantas destinadas à preparação de drogas para consumo do agente (art. 28, caput, e § 1º), não mais são considerados crimes, mas infrações sui generis, pois a Lei de Introdução ao Código Penal – Decreto-lei 3.914/1941 – considera como crime a infração penal a que a lei comine pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (art. 1º).

A Lei de Introdução ao Código Penal, como o próprio nome já diz, traz considerações acerca do Código Penal de 1940. Sabemos que a parte geral do Código Penal foi totalmente modificada pela reforma de 1984. A antiga parte geral do Código Penal sequer previa penas restritivas de direitos. Eram consideradas penas principais apenas a reclusão, a detenção e a multa (art. 28). Havia penas acessórias elencadas no art. 67, mas não existia previsão de penas restritivas de direitos como conhecemos hoje. Por esse motivo, a Lei de Introdução ao Código Penal não fez menção às penas restritivas de direitos, que são consideradas espécies de penas pelo art. 32 do atual Código Penal. O art. 28 está inserido no Capítulo III, do Título III da Lei de Drogas. E este capítulo trata dos crimes e das penas. Ou seja, a própria lei diz que estas condutas são crimes.  Desta forma, como as condutas são tipificadas como crime e a lei é especial, não há como aceitar que houve descriminalização.

Vencidos esses argumentos, outros passaram a ser levantados. Que apenas o usuário seria prejudicado, não podendo a lei punir a autolesão, e que haveria indevida invasão à sua intimidade, direito protegido pela Constituição Federal. A delimitação do tema já começa de forma equivocada, pois o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas tem como objetividade jurídica a saúde pública (principal), e a vida, a saúde e a tranquilidade das pessoas individualmente consideradas (secundário). Não está sendo punida a autolesão, mas o perigo que o uso da droga traz para toda a coletividade. Também não está sendo violada indevidamente a intimidade e a vida privada do usuário de drogas, uma vez que esses direitos não são absolutos e podem ceder quando entrarem em conflito com outro direito de igual ou superior valia, como a saúde e a segurança da coletividade.

Se é certo que o uso de drogas prejudica a saúde do usuário, o que ninguém coloca em dúvida, também é certo que ele não é o único prejudicado. A coletividade como um todo é colocada em risco de dano. A saúde pública é bem difuso, mas perceptível concretamente. E cabe ao Estado proteger seus cidadãos dos vícios que podem acometê-los. O vício das drogas tem o potencial de desestabilizar o sistema vigente, desde que quantidade razoável de pessoas for por ele atingida.

Não há levantamento do número de mortes por overdose ou por doenças causadas pelo uso de drogas ilícitas. Também não há estatística confiável do número de crimes que são cometidos por pessoas sob o seu efeito. E, também, não são sabidos quantos crimes são praticados pelo fato de a vítima ser usuária de drogas. Mas uma coisa não pode ser negada, o malefício das drogas, seja de forma direta ou indireta, é muito grande. Bem por isso esse crime é considerado de perigo abstrato, ou seja, o risco de dano não precisa ser provado, sendo presumido de forma absoluta.

Quem milita na área penal, notadamente no Júri, sabe que boa parte dos crimes de homicídio é cometida por pessoas que se encontram sob o efeito de drogas, sejam lícitas ou ilícitas. E, por outro lado, muitos crimes são praticados contra os usuários de drogas por algum motivo relacionado ao seu vício (desentendimentos, pequenos crimes, dívida com traficantes etc.). Aquele velho argumento de que o álcool também é droga, sinceramente não convence. Não é porque a situação está ruim que nós vamos piorá-la. O número de pessoas alcoolistas é enorme, e não é por isso que vamos aumentar a quantidade de viciados em drogas.

Um dos motivos que inibe o uso da droga é o fato dela ser proibida. Liberando o seu uso, que é o que a descriminalização irá fazer, certamente vai incentivar a dela se valerem aqueles que têm medo das consequências, seja na área penal ou na social. Se, é permitido, porque não posso fazer uso social da maconha, da cocaína, do crack e de outras drogas? Essa indagação passará pela cabeça de inúmeras pessoas, mormente das mais jovens. E não pensem que isso vai acabar com o tráfico. O traficante, na maioria das vezes em que é preso, tem em sua posse pequena quantidade de drogas para poder se passar por usuário. Nessa situação, nenhuma punição haverá com a descriminalização. E a condenação pelo art. 28 da Lei de Drogas enseja reincidência. Nem isso será mais possível, o que incentivará a prática de outros delitos. E já há forte jurisprudência no sentido de que nem a reincidência a condenação pelo porte de drogas para uso pessoal acarreta.

E quem irá fornecer a droga para os usuários hipossuficientes? O Estado? Certamente que não! O usuário continuará a comprar a droga dos traficantes. Mesmo que o Estado passe a fornecer a droga de forma controlada, nem assim o tráfico irá acabar. A procura será muito maior do que a oferta. E o Estado não terá condições de fornecer todos os tipos de drogas, o que o traficante saberá explorar. Mesmo a maconha, que alguns defendem ser inofensiva, causa transtornos psicológicos como qualquer espécie de droga e é passaporte para outras mais potentes e perigosas.

Essas são algumas das razões pelas quais não é possível a declaração da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas. A situação, que está ruim, pois estamos perdendo a guerra contra as drogas, só irá piorar. A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal não é o caminho. Ela somente irá aumentar o número de usuários e de viciados, além de fomentar o tráfico e colaborar para o aumento dos crimes violentos. Glamorizar o uso de drogas, enaltecer ou mesmo justificar a conduta daquele que as vende, dentre outros motivos, para saciar seu vício, é atitude impensada, irresponsável e que prejudicará ainda mais o combate ao comércio maldito.

Pior ainda é ver autoridades públicas, até mesmo operadores do direito em todos os níveis, defender esse absurdo. Esquecem-se aqueles que assim pensam que há obstáculo intransponível para a declaração da inconstitucionalidade do tipo penal de tráfico de drogas em todas as suas formas. Isso porque existe mandado de criminalização expresso no artigo 5º, inciso XLIII, da CF, determinando que a lei o considere como crime de especial gravidade, equiparado a hediondo, ensejando a seu autor, coautor ou partícipe, severas consequências penais e processuais penais. Nem mesmo por emenda constitucional referido dispositivo pode ser alterado ou revogado, por se tratar de cláusula pétrea, núcleo intangível da Constituição Federal (art. 60, § 4º, IV, da CF).

No entanto, já começou o julgamento de recurso extraordinário interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em que se discute a questão da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei de Drogas) e já há cinco votos pela declaração da inconstitucionalidade da norma, no que tange à maconha, e apenas um contrário (RExt 635.659). O relator, ministro Gilmar Mendes, votou pela inconstitucionalidade total da norma do art. 28, ou seja, para todas as espécies de drogas. Já os ministros Roberto Barroso e Edson Fachin votaram pela inconstitucionalidade apenas quanto à maconha (cannabis sativa), permanecendo crime o porte para uso pessoal das demais espécies de drogas. O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, votou a favor da descriminalização do porte de maconha para uso próprio e sugeriu estabelecer-se uma quantidade permitida.

Foi pedida vista dos autos pelo ministro Gilmar Mendes, provavelmente para que a questão seja amadurecida, posto que há reclamação de parlamentares, inclusive do presidente do Senado, de que há invasão da competência do Poder Legislativo, o que é a mais pura verdade. Ao ser reinserido em pauta de julgamento, o ministro alterou seu voto para descriminalizar apenas o porte e cultivo da maconha para consumo pessoal. O ministro Cristiano Zanin julgou constitucional o artigo 28 da Lei de Drogas e foi contra a descriminalização de qualquer espécie de entorpecente. A ministra Rosa Weber, antes de se aposentar, antecipou seu voto pela descriminalização do porte e plantio da maconha para uso próprio. O ministro André Mendonça, então, pediu vista dos autos e o julgamento está para ser retomado ainda em março de 2024.

O foro natural para essa discussão, que é muito mais política do que jurídica, é o Legislativo e não o Judiciário, que não pode simplesmente revogar uma norma vigente, válida e eficaz, que criminaliza o porte de drogas para consumo pessoal. Com efeito, sendo a norma julgada inconstitucional, deixam de ser aplicáveis todos os dispositivos previstos no art. 28 da Lei de Drogas, alcançando tanto o porte de drogas para consumo pessoal quanto o cultivo de plantas para sua fabricação ou preparação (art. 28, caput, e § 1º).

Vai depender se a decisão alcançará apenas a maconha ou a todas as outras espécies de drogas. A situação ficará um tanto esdrúxula. Será punido o tráfico de todas as espécies de drogas, mas o porte e cultivo para consumo pessoal de todas elas ou apenas da maconha, a depender do resultado do julgamento, não continuarão a ser criminalizados, sendo fato atípico. Não sendo mais a conduta considerada criminosa, não gerará reincidência e a polícia deixará de intervir para sua prevenção e repressão. Isso porque o art. 144 da Constituição Federal atribui às polícias (federal, civil e militar) o combate a infrações penais e não a outras espécies de ilícitos. Não nos parece constitucional seu emprego para apreender usuários e viciados se o porte de droga para consumo pessoal e seu cultivo não mais forem considerados infração penal.

Não é razoável descriminalizar o porte de droga para consumo pessoal com o fundamento de que há muitos traficantes presos e que aquele usuário que é flagrado com pequena quantidade pode ser confundido com traficante. Para isso que existe a investigação e a instrução probatória, lembrando que o traficante dificilmente traz com ele grande ou média quantidade de droga, justamente para se passar por usuário e não perder a “mercadoria”. Estabelecendo-se uma quantidade mínima para ser considerado tráfico, aí sim estará legalizado o que os traficantes já costumam fazer, que poderão trazer consigo pequena quantidade de drogas para alegarem ser usuários sem que os órgãos da persecução penal possam agir, que ficarão de mãos atadas enquanto o tráfico corre solto pelas ruas do Brasil afora.

Somente com o julgamento final do recurso extraordinário é que teremos conhecimento das suas consequências. Sendo desprovido, nada mudará. No caso de provimento, dependerá de qual o seu resultado (total ou parcial). Espero, sinceramente, para o bem da nação, que já sofre demasiadamente com o tráfico de drogas desenfreado, que os próximos ministros a votarem abram divergência e não permitam que o caos seja instalado no país, como ocorreu em vários países que adotaram esse modelo, como o Uruguai, em que a criminalidade que o tráfico traz em seu bojo aumentou e sem que houvesse a redução do comércio ilícito de drogas. O melhor seria, aliás, que sequer concluíssem o julgamento para que o Parlamento possa deliberar sobre o tema e quiçá realizar um plebiscito para que a população decida o que é melhor para ela, já que é a maior interessada na questão.

E, mesmo que seja a ação julgada improcedente, ainda há em tramitação no Parlamento projetos de lei com o propósito de autorizar o plantio e a comercialização da maconha para fins medicinais. São vários os projetos nesse sentido, todos com pequenas armadilhas que levarão à liberação do uso recreativo da maconha na prática, como ocorreu na Califórnia e em vários outros locais. Naquele estado, existiam lojas especializadas para que o usuário, ou dependente, passasse por uma consulta médica. A maconha podia ser receitada para quase todos os males, desde uma simples dor lombar até depressão. Ou seja, como não é possível medir e nem constatar a dor de outra pessoa e tampouco seu estado psicológico, era só dizer que sofria de algum mal em que a maconha podia ser prescrita, e pronto. Já saia com a receita médica e comprava a droga ali mesmo em diversos formatos. Atualmente, o uso recreativo da maconha foi totalmente liberado em vários estados estadunidenses, inclusive na Califórnia. Na cidade de San Francisco, por exemplo, suas ruas cheiram a maconha, que é fumada em quase todos os locais públicos.

Claro que por detrás desse interesse há grupos de pressão financeiramente poderosos, que pretendem cultivar e comercializar a droga, que passaria a ser receitada para os maiores de 18 anos de idade e que não tivessem algum problema mental, que os incapacitasse de compreender seus atos. Quem pensa que com isso o tráfico diminuirá, engana-se. O comércio ilícito não irá terminar, uma vez que os traficantes conseguem vender a maconha por preços mais baixos e, ainda, apresentar “melhor mercadoria”.

A maconha de hoje foi tão modificada geneticamente ou misturada com outros produtos químicos, que se tornou muito mais forte do que aquela dos anos 70, da época dos hippies.  Além do mais, é pela maconha que normalmente começa o vício e a dependência química e psíquica, passando seu usuário para drogas mais fortes, como a cocaína e o crack. Como já dito, aquela velha desculpa de que o álcool também é droga, mas lícita, não convence. Não é porque a situação está ruim, com alto número de alcóolatras, que vamos piorá-la, aumentando ainda mais o contingente de toxicômanos. Além de criar enorme gasto para o sistema de saúde pública, com a droga andam outros crimes, que são praticados pelo usuário para saciar seu vício, como pequenos furtos, além de outros muito mais graves, como latrocínio e homicídio.

Não desconheço que a maconha e outras drogas são matérias-primas para a produção de vários medicamentos, o que, aliás, é permitido. Não é disso que estou a falar, mas do plantio e do comércio da erva pronta para ser usada como droga, mesmo que a pretexto de remediar algum mal físico ou psíquico. E a questão ganha relevo pelo fato de a Justiça, em várias situações, ter autorizado o cultivo da maconha exclusivamente para fins medicinais, no caso para a extração do seu óleo e com prescrição médica. Vide, a propósito, recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (RHC 147.169 e REsp 1.972.092).

Acreditar que a pessoa irá plantar a erva, que é droga, apenas para uso medicinal é ser muito ingênuo, até porque, se houver fiscalização, o que duvido, será muito fácil burlá-la. Concluindo, descriminalizar o porte para uso próprio ou aprovar qualquer legislação que permita o plantio e comercialização da maconha in natura ou em outro formato (balas, bolos, pirulitos, bebida etc.) no território nacional, para qualquer fim, inclusive medicinal, irá aumentar sensivelmente o número de viciados nessa espécie de substância e, indiretamente, em outros tipos de drogas, pois a maconha é o trampolim para a dependência do uso de entorpecentes mais potentes e perigosos.

César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça do MPSP, é mestre em Direito das Relações Sociais, especialista em Direito Penal, professor e palestrante. É autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: “Comentários à Lei de Execução Penal”, “Manual de Direito Penal”, “Lei de Drogas Comentada”, “Estatuto do Desarmamento”, “Provas Ilícitas” e “Tutela Penal da Intimidade”, publicadas pela Editora Juruá.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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