Quando chega o carnaval, historicamente vêm junto com ele os “excessos autorizados” que precedem a Quaresma, numa forma de subversão temporária dos papéis sociais em que “certas transgressões são permitidas sem julgamentos”.
Então, homens se vestem de mulher, pessoas desfilam seminuas, embriagadas, e não há preocupação com o pudor naquele momento específico – pois na festa de carnaval, há uma liberdade poética que torna cada um independente e imune ao julgamento do que o outro considera certo ou errado.
O carnaval é momento de diversão, mas os direitos individuais são intransponíveis e devem ser respeitados.
Enfim, é tempo de erguer as mãos e cantar Ah la la oh! pelas ruas das cidades brasileiras, onde o calor do verão está no auge e as pessoas esbanjam alegria. Isso tudo é muito genuíno, afinal, é a festa brasileira mais popular e aguardada do ano. Porém, não vivemos em uma “terra de ninguém” e a extravagância do carnaval não pode extrapolar os limites do “outro”, ou seja, o bom senso não deve ser confundido com um momento para fazer o que der na cabeça, sem respeitar a vontade do próximo.
"Oras, mas é carnaval”, alguém pode dizer. "É a festa originária dos bacanais dionisíacos gregos, dedicados ao deus do vinho, Baco. É a festa marcada pela embriaguez e pela entrega aos prazeres da carne!” Até aí, tudo bem, cada um faz o que quer, desde que todos os envolvidos estejam de acordo, pois nem no carnaval e nem em qualquer outro momento em que estejamos tomados de forte emoção, temos a permissão, quiçá o direito, de desrespeitar outra pessoa.
Nesse sentido, vale mencionar que um corpo com pele à mostra não é nem nunca foi um convite aberto à perversão. Cada um tem direito de estar como bem quer no carnaval e os terceiros devem respeitar. E justamente por isso que no carnaval de 2017, mulheres cansadas da importunação exagerada e do assédio desmedido de alguns homens mais atrevidos iniciaram um movimento no Rio de Janeiro chamado “Não é Não”, colando em seus corpos adesivos com essa frase, como forma de alerta aos mais abusados que insistissem em ultrapassar os limites aceitáveis nas relações.
Seis anos depois, o governo federal promulgou a Lei 14.786 de 2023, que estipula o protocolo “Não é Não – Mulheres Seguras”, objetivando proteger e atender com respeito mulheres vítimas de violência sexual e/ou assédio em casas noturnas, bares, restaurantes e outros espaços com aglomeração de pessoas e consumo de bebidas alcoólicas.
Na prática, a ideia é que estes lugares sigam um protocolo específico e mantenham pessoas treinadas para agir de forma correta e coerente em caso de denúncia de violência ou assédio contra uma mulher, preservando e isolando a vítima, garantindo provas e intensificando o possível autor do crime. Tudo de forma discreta, para não expor nenhuma das partes até que as autoridades tomem para si a responsabilidade pelo evento.
Exatamente como acontece na Espanha, de onde veio a inspiração para o protocolo, por lá chamado “No Callem”. Ele foi criado justamente para coibir as insistentes importunações e assédios, ficando ainda mais conhecido após o “caso Daniel Alves”, ocorrido em uma boate em Barcelona, e que começou a ser julgado neste início de fevereiro. Mas é importante deixar claro que, apesar da lei ainda estar em período de vacância (adaptação por 180 dias), e de diversos estabelecimentos e locais ainda não terem se preparado para respeitar o protocolo, este carnaval não pode ser encarado como a “última forra” de 2024, como a derradeira “festa da bagunça” sem regras.
O protocolo é apenas uma medida administrativa que irá obrigar os estabelecimentos a seguirem determinadas regras. Mas, muito além disso, os crimes estão aí, e se forem praticados, existindo ou não o protocolo, seus autores deverão ser presos e punidos. Então, atenção: mulheres importunadas devem procurar os seguranças, os administradores, a polícia militar, e exigir seus direitos. O carnaval é momento de diversão, mas os direitos individuais são intransponíveis e devem ser respeitados.
“Não é Não”. Simples como a própria frase.
Leonardo Watermann é advogado e sócio fundador do escritório Watermann Sociedade de Advogados.
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