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| Foto: Gali Tibbon/AFP

A questão geopolítica do Oriente Médio tem aporias que atravessam questões que vão muito além da mera opinião de bar. Os problemas atravessam os tempos mais remotos, adentram as religiões mais populares do globo e desembocam em extremos políticos, corrupções astronômicas envolvendo extração de petróleo e tráfico de drogas. Enfim, falar sobre o Oriente Médio não é algo que demanda apenas uma tarde de documentários do History Channel, mas um estudo mais aprofundado da história clássica, medieval e moderna dessa região.

Após tal itinerário, talvez começaremos a compreender como Jerusalém é uma das regiões mais disputadas do mundo e como ela é o epicentro sagrado de ao menos três religiões colossais, as mais tradicionais da humanidade. Não bastasse esse impasse religioso, ainda há disputas políticas que envolvem Israel, Palestina, Turquia, Irã e os demais califados islâmicos espalhados pelo mundo; todos eles, de alguma maneira, sonhando em ter Jerusalém só para eles – pelo menos simbolicamente. Longe de querer opinar sobre quem tem razão para tal reivindicação, digo de antemão que não tenho capacidade moral para arbitrar sobre qual religião deve pairar o monopólio de Jerusalém, ou nem sequer opinar se tal monopólio é justo e desejável. Mas podemos analisar, a partir da situação atual, se tal tomada de decisão de Donald Trump foi ou não acertada.

A paz entre os extremos me parece ainda bem longe de ser alcançada, ainda que, de maneira evidente, estejamos muito mais perto dela que há 100 anos. Os extremistas islâmicos ainda parecem figurar como as causas maiores do que hoje chamamos de “extremismo religioso de cunho terrorista”. Isso não é xenofobia: a não ser que tenhamos casos de católicos se explodindo em mesquitas e rabinos jogando vans em cima de pedestres na London Bridge, temos de admitir que os atos terroristas motivados por crenças religiosas são quase todos envolvendo a religião islâmica. Sei que é politicamente incorreto dizer isso, mas é mentira?

Uma decisão como essa é muito mais séria que uma briga fronteiriça entre tribos

Por sua vez, Jerusalém é por excelência um lugar ecumênico que envolve religiões historicamente hostis umas às outras. Mas que guardam igual respeito pelo local sagrado; uma das raras motivações conjuntas que essas religiões respeitam e nutrem. Não há como ignorar esse papel agregador da cidade santa, muito menos achar que o ecumenismo – e não o sincretismo – seja um valor digno de ser buscado e defendido. O tradicionalismo religioso se mostra muito mais inerte do que produtivo nesses casos; num mundo em que um avião agrega judeus, cristãos e muçulmanos, eu rogo a Deus para que todos ali sejam minimamente ecumênicos e não rigoristas.

Donald Trump, movido claramente por uma pressão de consciência, dado que prometeu reconhecer Jerusalém como capital unificada de Israel em 2016, se deixou guiar por pressões religiosas e por uma mentalidade pouco prudente. Prudência essa que Russell Kirk, um dos maiores teóricos conservadores da modernidade americana, elencou como a virtude primeva de um estadista, seguindo as intuições de Edmund Burke e Adam Smith.

Dois problemas se ergueram nesse ato de Trump. O primeiro foi deixar a impressão de que ele é facilmente manipulável por pressões internas de seu eleitorado; ouvir seus eleitores é uma qualidade ímpar na democracia, mas nem sempre “a voz do povo é a voz de Deus” – a não ser que, nesse caso, Deus seja exclusivamente judeu. Trump ostentou em suas últimas decisões uma característica louvável num estadista: sua intrépida maneira de agir segundo o plano traçado. Trump passa-nos a clara convicção de ser pouco manipulável pela opinião pública e pela pressão popular, deixa-nos a clara impressão de ser um homem pragmático e cético frente a engenharias sociais, ao bom e velho estilo americano clássico; parece desenvolver uma missão de governo e, pautado nesse plano, toma suas decisões apesar das histerias ideológicas que o cercam. Entretanto, a prudência parece ter faltado nessa questão de Jerusalém. Sua ação parece ter sido muito mais uma birra contra a ONU, unida a uma tentativa de agradar o eleitorado judeu (e, de relance, o cristão), do que uma atitude estratégica pensada em médio e longo prazo.

O segundo problema é de cunho geopolítico e militar; Trump colocou um “alvo” gigantesco sobre Jerusalém. Os extremistas que pouco se importam com a sacralidade do local, achando ser mais sacro o derramamento de sangue dos “infiéis”, poderão e irão a todo custo tentar acertar o alvo como uma maneira de represália à investida de Donald Trump e Benjamin Netanyahu. O líder do grupo terrorista Hamas, Ismail Haniyeh, já convocou uma investida dos extremistas contra Israel.

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Tal ato do presidente americano trouxe à superfície novamente a questão do terrorismo como ato de represália política. Não que um dia ele tenha deixado de existir, mas agora tal situação se agrava. O extremismo religioso nem sempre é previsível, a não ser que já tenham inventado um maquinário para prever intenções e pensamentos que somente figuram nas mentes dos loucos. Os atos terroristas, muitas vezes, não são anunciados em computadores ou no WhatsApp, e com isso não são tão previsíveis assim; o terrorismo só precisa de um fanático com acesso aos artefatos certos – por vezes, caseiros – para construir um explosivo que matará dezenas de pessoas.

A luta contra os extremismos islâmicos deu um passo atrás com a decisão de Donald Trump; ainda que Israel venha se mostrando muito competente em evitar tais situações, eles sabem que o terrorismo não é 100% evitável.

A questão religiosa que envolve a cidade santa parece ser eterna; o Islã quer Jerusalém porque é uma religião de califados conquistadores; além disso, há uma tradição no islamismo que crê que o próprio profeta Maomé tenha estado em Jerusalém e ascendido ao céu numa escada “milagrosa”. Conquistar o mundo para Alá e Maomé é uma regra inviolável no islamismo, um mandato irrevogável desde o século 8.º, aproximadamente; com Jerusalém não seria diferente.

Os cristãos são os menos fanáticos, hoje em dia, nessa questão. Para os seguidores do Cristo, aquele é um lugar de culto e respeito ao Jesus que padeceu na cruz e depois ressuscitou; entretanto, para eles, Jerusalém é um local muito mais simbólico do que propriamente um terreno geograficamente irrevogável, pois o Reino do Cristo não é deste mundo, conforme ele mesmo disse (João 18, 36); transpõe as fronteiras dos reinos terrenos. O Cristo há de voltar para julgar e salvar o mundo, e nessa linha Jerusalém é um local importante donde toda a história cristã deriva; todavia, em sua volta ele será apenas mais um recanto. A cidade sacra que outrora valeu o sangue de milhares de soldados cristãos ainda devolve ao cristianismo o apego com a terra donde verteu tantos atos de heroísmo nas Cruzadas, na intenção de evitar uma invasão islâmica na Europa no início do século 11.

Leia também:Trump se precipita (editorial de 10 de dezembro de 2017)

Entretanto, nem de perto esse apego histórico se equivale ao apego cultural do judaísmo à Terra Santa. Para os judeus, a ligação histórica com Jerusalém é algo embrionário e inseparável de sua cultura. Uma criança judia nasce ouvindo sobre as promessas feitas a Abraão e Moisés; sobre os profetas e sua coragem em anunciar aos pagãos a fé no Deus único; sobre toda a labuta em vagar 40 anos no deserto após o exílio no Egito, para enfim chegar à terra prometida. Jerusalém sagrada é a terra que o próprio Deus prometeu ao legar Israel aos cuidados do povo da linhagem de Abraão; a terra que Moisés viu, mas na qual não entrou; a terra de onde jorra leite e mel. Falar sobre o judaísmo sem falar de sua ligação geográfica é simplesmente deformar essa religião milenar e torná-la irreconhecível. Tal situação se tornou ainda mais pulsante após a Segunda Guerra Mundial, quando o povo judeu tornou-se novamente mendicante e errante, um povo sem terra, esperanças e bens, um povo caçado e humilhado; para muitos, o Estado de Israel – oficializado como tal em 1948 – é um caso de justiça histórica e expurgo contra o antissemitismo dos nazistas e seus aliados.

Nessa batalha em que cada religião teria milhões de argumentos para reivindicar sua primazia de direitos, Trump, falando em nome do Poder Executivo dos EUA, ao anunciar que reconhece Jerusalém como capital de Israel, toma partido nessa briga religiosa milenar. Não foi para isso que o Estado republicano foi criado, e nem é assim que ele se manterá. É verdade que uma lei americana de 1995, aprovada pelo Senado, permite que os EUA reconheçam Jerusalém como capital de Israel. No entanto, como tentei demonstrar acima, do ponto de vista político, religioso e da sensatez geopolítica militar, isso não deveria ser feito. Pelo menos não até que as aporias que envolvem todo o cenário problemático encontrassem uma resolução mais adequada.

Enfim, Trump foi abobalhado nessa decisão e, apesar de termos nossas convicções pessoais e preferências religiosas, tais preferências não devem dar o tom quando o assunto são decisões que influenciam o planeta inteiro. E, ainda que o Estado de Israel venha se mostrando suficientemente maduro politicamente para não se dobrar frente ao globalismo imposto pela ONU, temos de entender que uma decisão como essa é muito mais séria que uma briga fronteiriça entre tribos; envolve uma batalha milenar que demanda esmero e inteligência em vista de um mundo menos extremista. Nunca dantes a política do bem comum se fez tão tangente como nesse caso. A segurança da cidade, turistas e cidadãos não vale a jogada política do presidente americano e do primeiro-ministro israelense.

Trump não deve agir com suas preferências pessoais num caso tão delicado, mas sim com inteligência e estratégia, com o mesmo pragmatismo que outrora vinha mostrando em suas decisões. Trump vem acertando de maneira sistemática em suas ações gerais, mas desta vez ele errou. Jerusalém poderá se tornar a capital das catástrofes terroristas muito em breve; espero que, desta vez, minha análise política esteja completamente errada.

Pedro Henrique Alves é filósofo, colunista do Instituto Liberal, criador e escritor do Blog do Contra.
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