Em 12 de agosto, o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, defendeu a diminuição do texto constitucional, para ajudar a destravar a economia do país. Afirmou que a Constituição de 1988 é generosa com direitos. Já havia dito, em 29 de março, que "o excesso de texto na Constituição faz com que muitos processos acabem sendo enviados ao Supremo e abre muitas possibilidades para decisões conflitantes entre as esferas do Judiciário, o que provoca morosidade", e que "O Brasil precisa se reencontrar, não podemos viver em uma sociedade que o ódio impere".
Alguns juristas criticaram a declaração do ministro, afirmando que a Constituição exige que sejamos democracia, e até mesmo que não somos merecedores desta Constituição, uma das mais modernas e protetoras dos direitos sociais.
A Constituição de 1988 foi, efetivamente, um avanço civilizatório e não podemos desistir de realizar a vontade constitucional de fazer do Brasil uma república que visa construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir a pobreza, garantir o desenvolvimento nacional e promover o bem de todos, como diz seu artigo 3.º. Direitos fundamentais confirmados pela Constituição devem ser mantidos. Não pode haver retrocesso social, seja formal ou materialmente.
O nosso sistema judicial, exageradamente estruturado em quatro instâncias, permite dezenas de recursos intermediários, gerando uma dependência nociva de decisões do Supremo
Entretanto, este não é o ponto central do problema. O travamento, a demora, a burocracia e ineficiência judicial criticados pelo ministro Dias Toffoli decorrem da confluência de dois fatos inquestionáveis: a extensão normativa da Constituição, envolvendo quase todos os aspectos da vida nacional (temos uma Constituição analítica) e a competência exclusiva do Supremo para concluir temas constitucionais.
A competência exclusiva do Supremo para definir questões constitucionais, mesmo com filtros processuais, encaminha milhares de processos para a suprema corte (foram 102 mil casos em 2017), muitos não sendo mais que meras querelas individuais, sufocando o Supremo com tenebroso estoque de processos (por volta de 50 mil).
O nosso sistema judicial, exageradamente estruturado em quatro instâncias de julgamentos, destoando da maioria dos modelos mundiais, permite dezenas de recursos processuais intermediários, gerando uma dependência nociva de decisões do Supremo. Os processos recursais de questões particulares no Supremo são maioria absoluta (84%), podendo gerar cascatas de recursos impronunciáveis. Veja-se o caso do Agravo de Instrumento 160.035, em que agravos regimentais contestavam outros agravos regimentais, embargos de declaração contestavam outros embargos de declaração, até chegarmos à bizarra sigla AgR-ED-ED-EDv-AgR-AgR-AgR-AgR-EDv-AgR, com o último recurso relatado pelo ministro Sydney Sanches em 2001.
Na área criminal, além dos recursos dentro do próprio processo, permite-se um questionamento contínuo das decisões, no decorrer das quatro instâncias, através de ilimitadas ações autônomas de habeas corpus e mandados de segurança, gerando um lento caos de decisões, um processo kafkiano que nunca acaba.
A estrutura repetitiva e exagerada gera problema financeiro. O sistema de Justiça brasileiro tem custado elevado percentual do PIB (1,3%), muito superior ao gasto por democracias desenvolvidas (França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Portugal, todos entre 0,2% a 0,37%), sem entretanto resolver o mal da lentidão e acúmulo de processos, indicando também que o aparelho judicial precisa ser racionalizado e redimensionado.
Não bastasse, ressurge forte pressão para retorno do famigerado princípio da inocência absoluta, que vigorou entre 2009 e 2016, que impede o cumprimento da pena antes de trânsito em julgado do processo, permitindo que o condenado leve seu processo até o Supremo, quarta instância recursal, livre da prisão, demorando décadas para ser julgado, permitindo protelações, prescrição, impunidade e muita injustiça.
É impossível desburocratização, crescimento e realização dos direitos estabelecidos na Constituição sem uma reforma na ultrapassada estrutura do Judiciário
A combinação do princípio da inocência absoluta com as quatro instâncias de julgamento, se implementada, levará novamente ao paraíso recursal, espaço propício para protelações, lentidão, impunidade e perigosa descrença no sistema judicial. Nesse regime de dominação burocrática, em que o protocolo de mais um recurso livra condenado confesso da prisão por anos, ganham os delinquentes, mas o Brasil perde.
Esse problema estrutural, com raras exceções, não tem sido enfrentado e criticado pelos juristas. Parece fazer parte de um espaço mitológico intransponível e intocável. Com outro olhar, pode parecer uma imensa reserva de poder e mercado, em que o protocolo de mais um recurso prorroga o processo por anos, e que muitos não têm interesse de mudar.
Entre as exceções, destacam-se recentes e importantes críticas dos próprios ministros do STF, no mesmo sentido das declarações do ministro Dias Toffoli. O ministro Gilmar Mendes é um dos que têm apontado o grave problema. Em recente palestra, explicou que “nos tornamos, e isto é um problema, um país Judiciário-dependente”. Voltou a defender “desjudicialização” e que os integrantes do Judiciário se tornem “menos decisórios, menos impositivos, mais humildes". O ministro Luis Roberto Barroso, em histórica entrevista, concluiu: “Precisamos fazer uma revolução no modo como o Judiciário funciona”. Destacou: “É preciso criar uma cultura de que o devido processo legal se realiza em dois graus de jurisdição, o primeiro e o segundo”.
O ministro Marco Aurélio tem sido incisivo: "precisamos repensar o Supremo, ver se provocamos alguma legislação para enxugar ainda mais a demanda do tribunal. Temos produzido muito pouco em plenário. O Supremo decide quase a totalidade no campo individual. Não é o desejado. A anomalia está na carga e na chegada de tudo quanto é matéria ao Supremo". Destacou: "o volume de trabalho prejudica a qualidade das decisões". E o ministro Luiz Fux, em palestra internacional, teve de confirmar ao público o estranho número de processos que tramita no Supremo. Na ocasião, o STF tinha por volta de 70 mil processos para julgar, enquanto a Suprema Corte dos Estados Unidos, apenas 70.
É nesse quadro que devemos refletir sobre as declarações do ministro Dias Toffoli. A competência do Supremo para decidir milhares de recursos de processos subjetivos, questões pessoais, em quarta instância, além da natural função de corte constitucional, é um desatino. Esse, certamente, é o motivo do travamento, demora e burocracia criticados pelo ministro.
A trava que pesa sobre o Judiciário, gerada pela exacerbada competência do Supremo e quatro instâncias de julgamentos, é uma verdade inegável. Narrativas desviantes dessa verdade, alimentadas por interesses corporativos, aumentam o problema. Sem reformas, ficamos em débito para com essa verdade e isso é um grave mal, que atrapalha o crescimento e pesa sobre a nação.
O Supremo precisa ser libertado dessa descomunal carga de processos, competências e poder
O sistema judicial ganharia em fluidez, eficiência e justiça se o Supremo transferisse a tarefa de julgar casos subjetivos (corte recursal) para as instâncias inferiores e focasse na função de corte constitucional, decidindo as questões nacionais objetivas, fornecendo jurisprudência firme, decisões colegiadas estáveis, para aplicação pelas instâncias inferiores e órgãos administrativos.
O Supremo precisa ser libertado dessa descomunal carga de processos, competências e poder. O Supremo precisa cumprir a sua fundamental função de corte constitucional com tranquilidade e com muito mais rapidez. O Supremo precisa concentrar sua atuação nas questões nacionais objetivas, decidindo pelo plenário sobre a constitucionalidade de leis e jurisprudências, pacificando a nação para o progresso.
O país passa por um momento legislativo histórico, com reforma previdenciária já quase concluída e reforma tributária em estudo. Mas é impossível desburocratização, crescimento e realização dos direitos estabelecidos na Constituição sem uma reforma na ultrapassada estrutura do Judiciário. Os juristas do país precisam debater o tema e assumir essa responsabilidade de conduzir essa obra indispensável.
José Jácomo Gimenes é juiz federal há 25 anos e foi professor do Departamento de Direito Privado e Processual da UEM de 1989 a 2017.