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Devem ser tolerados os intolerantes?

Mesmo sabendo ser pretensioso escrever sobre Charlie Hebdo quando muitos especialistas já escreveram, resolvi expor-me e o fiz porque considerei a famosa história de um senhor muito tímido que decidiu, já entrado em anos, endereçar àquela que queria para sua mulher um pedido de casamento a que ela, surpresa, respondeu: "Senhor, por que vindes tão tarde?"

O semanário satírico atingiu seu objetivo e, ao que parece, continuará atingindo, agora em escala universal. Nunca se imaginou que seus idealizadores pudessem escrever: "Pedimos desculpas pela imagem que deverá lhes parecer extremamente desrespeitosa e desmerecedora". Seu ethos sempre foi marcado por irreverência, criatividade, crítica, liberdade e, para alguns, irresponsabilidade. Faz tempo que o semanário tem um posicionamento claro de rebeldia e ousadia, mas também de um discurso sério de compreensão do seu próprio tempo. Charlie Hebdo nada esquece, nada omite e nada simplifica. Afinal, em matéria de liberdade e espírito livre não dá para agir por cálculo, por prudência. Daí a afirmação de Daniel Cohn-Bendit, um dos baluartes da geração contracultura dos anos 60, de que a tragédia só ocorreu porque o jornal foi até o fim, apesar de tudo.

É óbvio que seus escritos e seus desenhos continham exageros e provocações desnecessárias. Todavia, não devemos esquecer-nos da máxima de que, neste século 21, "sem exagero, não há razão de ser"; afinal, vivemos o paradigma da diversidade. Considerando as charges, acrescentaria que o cartunista é original e crítico, ou então não é cartunista. Penso que em tudo é necessário o contraponto, interpretado por Kant como a importância do pé esquerdo, mesmo que, aparentemente, possa parecer inútil ou ineficaz. Em Conflito das Faculdades, enfatizou que o pé esquerdo, no mínimo, serve como alavanca para o pé direito. Assim, a liberdade e a autonomia de Charlie Hebdo têm sua relevância e, sem ele, teríamos mais sociedades intolerantes que propriamente tolerantes. É fato que, como não existem sociedades absolutamente intolerantes, também não existem sociedades absolutamente tolerantes. Também é fato que, excetuando-se acontecimentos como este, estamos mais avançando que retrocedendo.

Sobre o ataque em si, diferente do famoso 11 de Setembro, que teve como alvo o centro econômico e bélico, este atingiu o centro de valores democráticos e libertários e o prejuízo é incalculável, daí a necessidade de se fazer algo diferente. A França é a terra das humanidades, das aulas libertárias de Abelardo, dos panfletos de Voltaire e D’Alembert, das novelas de Sartre, das intervenções de Foucault, Deleuze e Derrida – e, agora, terra dos mártires de Charlie Hebdo.

Faz tempo que a boa crítica se reveste de panfletos, de paródias, de músicas e de desenhos. Não há dúvida de que Charlie Hebdo é o celeiro de parte disso. Fazendo uso de um conceito de Giorgio Agamben, os jornalistas do Charlie Hebdo profanavam tudo, em especial aquilo que era sacralizado sem consciência e sem razão. Utilizando-se de uma linguagem incomum, universalizam pela mídia livre uma reflexão através do cinismo, ironia e paródia jamais vistos.

Já profanaram o catolicismo conservador, o protestantismo radical, a hierarquia judaica e sua maior especialidade, o "terrorismo islâmico". Urge que possamos continuar defendendo uma sociedade livre. Para Daniel Cohn-Bendit, "uma sociedade livre é justamente aquela que suporta o excesso" – acrescentaria: "E que também saiba tolerar os intolerantes". A dúvida é: de que maneira?

Claudio César de Andrade, doutor em História e Sociedade pela Unesp, é professor do Departamento de Filosofia da Unicentro.

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