Após a semana estarrecedora em que acompanhamos o desespero da população de Manaus, que vive situação caótica causada pela falta de oxigênio para pacientes de Covid-19 e outros quadros que necessitam de auxílio respiratório, vemos o Brasil finalmente comemorar o início da vacinação no país, apesar da incerteza de como será o processo e quais cidades e estados realmente receberão doses das vacinas em breve.
Quero, ainda no início desse texto, sanar qualquer dúvida sobre o que penso da vacina. Como médico, vejo na ciência as respostas para a prevenção, tratamento e cura de doenças. Aliás, até agora, essa premissa me parecia consolidada tanto entre médicos e demais profissionais da saúde quanto entre a população, que não costumava colocar em xeque a eficácia de um imunizante ou até mesmo de uma medicação já aprovados pela comunidade científica. Entretanto, todos os dias recebo no consultório pacientes que me perguntam se devem ou não tomar vacina.
A vacina é o único caminho que levará ao fim da pandemia. Todos os países do mundo buscam desesperadamente soluções financeiras, logísticas e de mercado para vacinar sua população. Tanto a vacina de Oxford quanto a Coronavac – aprovadas para uso emergencial pela Anvisa – passaram pelas fases obrigatórias de testes e provaram sua eficácia cientificamente. No caso da Coronavac, alvo de críticas políticas sem sentido, a taxa de eficácia de 50,38% está dentro do índice recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e por órgãos regulatórios de outras partes do mundo, como o Food and Drug Administration (FDA) dos EUA. Esse número é similar ao de pelo menos outras duas vacinas que já fazem parte do Plano Nacional de Vacinação (PNI): as vacinas contra a gripe e a tuberculose.
Executado por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o programa de imunização brasileiro sempre foi reconhecido internacionalmente tanto por sua cobertura quanto pela eficácia na distribuição. É verdade que nosso sistema de saúde pública tem diversos problemas; porém, a oferta e distribuição de vacinas sempre foi motivo de orgulho para nós. Quando o assunto é vacina, somos referência para todo o mundo.
O que faz, então, com que o Brasil, que desde 1992 mantém taxa de crescimento nos índices de cobertura de vacinas, tendo alcançado 99,7% da população-alvo imunizada em 2017, tenha se atrasado tanto quando se trata da pior pandemia já enfrentada no nosso século? Por que mesmo após os resultados dos testes demoramos para aprovar o uso, não nos preparamos com compra e distribuição de insumos, não criamos um plano de vacinação robusto e eficiente?
A resposta a essas perguntas não está na ciência, mas na degradante forma de fazer política do Brasil. Desde a chegada da pandemia ao país, temos visto pessoas das mais variadas ideologias políticas criando uma narrativa falsa e cruel, que politizou a medicina e a ciência. De repente, vimos a internet ocupar o lugar dos laboratórios e passar a determinar quais drogas devem ser utilizadas e em qual momento da doença, quais medidas de contenção da transmissão funcionam ou não, se devemos utilizar essa ou aquela vacina. Esse murmúrio anticiência, porém, não surge de maneira orgânica, de maneira despretensiosa. O negacionismo científico custa vidas e se retroalimenta das agendas políticas de pessoas e grupos sem escrúpulos que não pensam em nada além de seus objetivos para a próxima eleição. Ao tratar de questões de saúde como tema político, cria-se um ambiente de descrédito da ciência, que culmina na desvalorização da vida.
Ainda tratando dos motivos que nos colocaram no fim da fila em relação à vacinação no mundo, nos deparamos com a falta de gestão. Essa, sim, uma esfera de intervenção política, que necessitava planejamento antecipado, reserva financeira, comunicação clara e boa vontade. Entretanto, mais uma vez vimos objetivos político-eleitoreiros e não de eficiência de serviços. Mas, se de um lado vemos a total inépcia para a gestão da crise sanitária, de outro, vemos a mesma agenda – que já olha para 2022 – se apropriando das conquistas científicas e criando uma narrativa de “salvador de pátria”, da qual já temos muitos exemplos e sabemos que não existe e não funciona.
A verdade é que devemos, sim, comemorar o início da vacinação no país, devemos celebrar a ciência e os que trabalharam incansavelmente pela interrupção das mortes no Brasil. Mas não nos enganemos: celebramos apesar de Bolsonaro, apesar de Dória e apesar de diversos outros nomes envolvidos na politização da pandemia. Para esses, falta ética ou competência, mas falta também empatia, amor ao Brasil e aos brasileiros. Devemos enxergar claramente a quem devemos as palmas pela luz no fim do túnel. Viva a ciência, os pesquisadores e todos os brasileiros que participaram dos testes. E sim, devemos todos tomar a vacina.
João Guilherme Oliveira de Moraes é médico oftalmologista, conselheiro do CRM-PR, especialista em Gestão de Cidades e foi candidato à prefeitura de Curitiba em 2020 pelo Partido Novo.