| Foto: Pixabay
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Era 13 de março de 2019, às 7 horas. Os termômetros marcavam 14 graus e caía uma garoa fina, um típico dia de verão curitibano. Juliana estava na fila da Defensoria Pública para atendimento. Ela chegou cedo porque não podia perder a viagem. Trabalhando como diarista duas vezes por semana, cada dia sem trabalho representava uma perda muito grande para a família. Junto com ela estavam seus dois filhos, Pedro e Ana, que comiam bolacha maria, sentados no meio-fio.

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Durante o atendimento, Juliana explicou que queria ajuizar uma demanda de pensão contra o pai das crianças: “ele foi embora logo que a Ana nasceu sem falar nada, nem sequer deu a desculpa que saiu pra comprar cigarro”. Ela, que até então se dedicava ao lar e aos filhos, foi à luta. Mesmo com dificuldades, conseguiu um emprego registrado que logo perdeu: “as crianças ficavam doentes e eu precisava ficar com elas em casa, né, doutora?”

Ao fim do atendimento, marcamos o retorno de Juliana para 5 de abril, quando então Pedro nos contou que aquele era o dia de seu aniversário. A estagiária que acompanhava o atendimento prometeu que traria um bolo para comemorar e ele respondeu com entusiasmo: “Que legal, minha mãe disse que eu não vou poder ter bolo esse ano, igual nos outros, porque não tem dinheiro”.

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A estagiária se emocionou e fomos para a minha sala. Lá conversamos sobre o caso e sobre o que viria pela frente: a verdade era que aquele sofrimento não tinha data para acabar. Juliana teve acesso à Justiça por intermédio da Defensoria Pública, mas era preciso localizar o pai, citá-lo e esperar uma sentença judicial favorável caso não houvesse acordo. E essa seria apenas a primeira fase, pois se ele não pagasse – o que era provável – teríamos de fazer um pedido de cumprimento de sentença, novamente localizá-lo e aí por diante. Ou seja, meses, anos, ou quem sabe nunca Juliana receberia valor algum. Enquanto isso, Pedro e Ana continuariam sem bolo e, certamente, sem acesso a condições essenciais ao seu desenvolvimento, que vão além de arroz, feijão e bolacha maria e dizem respeito àquilo tudo que a Constituição da República e o Estatuto da Criança e do Adolescente “garantem” a eles.

Essa via crúcis aconteceu também com Ângela, a mulher que acompanhei na audiência de conciliação do dia anterior ao atendimento de Juliana. O processo durava já cinco longos anos sem ela receber qualquer ajuda financeira do pai de seus filhos, em um processo judicial no qual a dívida já alcançava o valor de um carro. Enquanto isso, ela provia sozinha, material e afetivamente, os três filhos. “Mas eu levei um presente de Natal para eles”, disse o pai na audiência, quando tentava se eximir do abandono de todas as formas.

Nessa mesma audiência, após eu (grávida de 8 meses) e Ângela termos sido interrompidas e desrespeitadas inúmeras vezes pelo advogado do pai, que queria pressioná-la a fazer um acordo completamente prejudicial, solicitei que o ato fosse encerrado. O advogado, então, dirigiu-se a mim e falou: “Nossa, esperava algo diferente de uma grávida, esperava mais sensibilidade”. Mesmo dentro de todo o meu privilégio de ser defensora pública, estável, de classe média, branca, senti-me completamente vulnerável, sem condições de continuar aquela audiência. Mas eu voltei, sozinha, para não expor ainda mais Ângela. Acompanhei a ata ser finalizada sentada ao lado do nobre causídico que me insultou, fingindo estar plena.

Dias depois, saí de licença-maternidade. Voltei ao trabalho com todas as dores e dificuldades de gerir a maternidade e a minha profissão e, de quebra, com aquele sentimento de culpa que caminha sempre ao nosso lado. Respondi – ainda respondo – inúmeras vezes a pergunta sobre como concilio a maternidade e o trabalho, pergunta essa que nunca fizeram ao pai e que eu, sinceramente, nem sei responder. E os questionamentos sobre como eu posso viajar a trabalho às 5 da manhã e voltar às 23, sem o filho! Ao pai, que viaja mais que eu, nunca perguntaram; afinal, sou eu que não estou cumprindo o papel social que se espera de mim.

Mas eu voltei, Juliana voltou, Ângela voltou. Nós todas diferentes, com diferentes histórias de vida, visões de mundo, perspectivas, mas todas mulheres, lutando contra nosso sistema machista e patriarcal que nos quer fazer ficar, que nos quer calar, que nos quer interromper e que tem mil faces: não se resume ao estereótipo do homem bruto que acredita que o lugar da mulher é no tanque. Está em todos os espaços: nas nossas famílias que perguntam para nós – e só para nós – se não está na hora de fazer a comida do bebê; em nossos colegas de trabalho que falam “brincando”, claro, que não querem mulheres na equipe porque elas engravidam; ao conciliador que fala na audiência “mas veja, mãe, o pai está se esforçando, quer buscar a criança a cada 15 dias”; naquela sua amiga que elogia o seu marido, pai, que troca a fralda do bebê. Quantas leitoras mães já estiveram nessa situação? Está no homem bruto, está na mãe, está no pai, está nos amigos, está nas instituições, está em nós. Está no sistema de Justiça, aquele ao qual Juliana e Ângela recorreram na esperança de achar uma saída.

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Quando somos mães, o machismo se multiplica e exala de todos os cantos. As mães negras são ainda mais vulneráveis, estando sujeitas mais intensamente a todos os tipos de violência (mas esse não é meu local de fala).

Para mudar nossa realidade e acelerar essa igualdade de gênero que dista muito de ser alcançada, precisamos ocupar espaços de poder, embora seja dura a luta. Espaços de poder na política, nas universidades, nas empresas, no sistema de Justiça, na comunidade, na igreja, no jornalismo, nas artes, espaços esses todos dominados por homens, apesar de nós, mulheres, sermos a maioria numérica, representando 51,7% da população, segundo o IBGE.

Sueli Carneiro, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, disse em entrevista que “O pessoal da orientação sexual não vai retroceder em suas lutas, as mulheres não vão recuar nas suas agendas; nós não vamos voltar para a senzala. E isso está colocado. Vai ter luta!” Então vamos sós, vamos juntas, vamos com nosso bebê no colo, no canguru, no carrinho, ou de mãos dadas, mas vamos. Afinal, nada sobre nós, sem nós.

Vai ter luta.

Ana Caroline Teixeira é defensora pública no Paraná e presidente da Associação das Defensoras Públicas e Defensores Públicos do Paraná (Adepar).

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