A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, combatendo nos campos da Itália entre 1944 e 1945, constituiu a maior experiência do Exército Brasileiro em nossa contemporaneidade. Mas poucos são os estudiosos que têm se debruçado sobre o verdadeiro universo da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Fala-se de uma guerra que se desenrolou fora do país, da qual os mais velhos já não se lembram mais e que é totalmente desconhecida pelos mais jovens, uma vez que a FEB não está nos livros didáticos e parte dos estudiosos demonstra reticência em relação à pesquisa feita entre os historiadores militares. Também colaboram para esse esquecimento a posição política de muitos, além da arraigada disposição dos historiadores profissionais em não discutir temas militares, fruto das relações conturbadas entre o meio estudantil e o regime militar implantado em 1964.
Os diários de guerra dos soldados brasileiros foram, durante muito tempo, considerados ufanistas demais e, por isso, deixados de lado pelos pesquisadores. Mas uma leitura mais atenta pode ser reveladora sobre a história nacional, a declaração de guerra aos países do Eixo em 1942, a convocação dos soldados e o embarque para a Itália. Nessa visão, os diários podem se tornar fontes primeiras, pois estão longe da descrição fria do relatório meramente técnico, mostrando o cotidiano da guerra, o espírito de companheirismo, a visão do soldado sobre as patrulhas que partiam para o front, além da fragilidade ao sair pelos campos minados, no enfrentamento a um inimigo aguerrido e experiente em diversas frentes, seja no Norte da África ou na Rússia.
Em seus testemunhos, os soldados brasileiros registraram momentos de grandiosidade na guerra, especialmente pelo atendimento às populações italianas que a tropa ia encontrando pelo caminho, alimentando velhos, mulheres e crianças. Os expedicionários prestaram socorro médico aos menos assistidos, numa verdadeira ação humanitária, tão pouco praticada por outros exércitos. A vivência com a população rendeu diversos casamentos entre brasileiros e italianas, bem como laços de amizade que jamais foram esquecidos.
Na polifonia de vozes que se intercruzaram no cotidiano, mais as ações pela militarização dos jovens e a formação cívica dos cidadãos, buscaram os veteranos da FEB expressar em seus escritos um momento vivido.
Mas não é apenas o momento da guerra que está presente nesses diários; o perfil dos velhos guerreiros denota uma preocupação sobre os acontecimentos que afetam o país. O espírito cívico prevalece nas posturas e nos comentários, com grande preocupação pela cidadania. Pelos diários percebe-se uma crítica contundente, não somente ao comando, mas à ditadura imposta pelo Estado Novo e a censura do Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas. Muitos se questionavam, pois combatiam no exterior por uma liberdade que não encontravam em seu próprio país.
Na onda que varre a memória do nosso país, buscaram os veteranos da FEB registrar suas memórias em busca de um sentido histórico, mostrando à juventude de hoje os ideais de ontem, expressos nos relatos dos acontecimentos, em uma missão que eles dizem ser permanente. Descortinam-se nos diários de guerra dos soldados brasileiros que combateram na Itália retalhos de histórias, fragmentos da memória, na voz dos atores que ajudaram a engendrar suas histórias. São conexões da memória pública, abalizada pela memória individual e coletiva, herdadas ou construídas pela memória nacional, que oferecem aos pesquisadores uma inesgotável fonte para a compreensão da história recente brasileira.
Carmen Lúcia Rigoni é professora universitária, especialista em assuntos da FEB.