Neste 1.º de maio, dia dos trabalhadores, não posso falar em comemoração, mas em respeito e homenagem aos trabalhadores, especialmente aqueles da área de saúde, que já estão trabalhando muito acima de sua capacidade máxima razoável, e tantos outros de serviços essenciais espalhados pelo mundo, muitos dos quais, inclusive, já perderam as suas vidas.
Também escrevo aos que trabalham em casa ou fora dela, e mesmo aos que não trabalham, pois dependem do trabalho de alguém, para que lembrem as vítimas que não tiveram a escolha entre ficar e não ficar em casa, e para que aqueles que têm escolha e podem fazê-la o façam para proteger a si mesmos e aqueles que amam – se não para evitar, ao menos para minorar os riscos destes heroicos trabalhadores anônimos.
A incerteza predomina desde que, em dezembro de 2019, tivemos o primeiro caso de coronavírus, e que se espalhou pelo mundo em poucos meses. Os países tiveram de buscar soluções para o grave momento, tanto em relação à crise sanitária quanto ao socorro econômico daqueles que se viram sem outra possibilidade de renda. Especialmente no ambiente de trabalho brasileiro, diversas medidas foram adotadas sequencialmente, criando um verdadeiro microssistema trabalhista para regulamentar as relações de trabalho enquanto durar a pandemia.
A economia, neste momento, pode e deve ser socorrida pelo Estado; é isso que deveria ter sido reivindicado, e não o fim do isolamento social
O essencial é não se perder de vista a dignidade da pessoa humana, também no aspecto da saúde física e econômica dos trabalhadores. Desde a Lei 13.979/20, que tratou sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da Covid-19, além do Decreto Legislativo 6, de 20 de março, e das medidas provisórias que os sucederam, muitos debates se destacaram em relação à questão de saúde pública e políticas econômico-trabalhistas.
No entorno de medidas relacionadas à saúde coletiva no trabalho, não se pode deixar de destacar a importância do isolamento dos trabalhadores em atividades não essenciais, a fim de não sobrecarregar os sistemas de saúde, bem como a politização do tema, levando alguns grupos a sair de carro pelas ruas para reivindicar o fim do isolamento (antes do momento adequado) de modo que os seus empregados voltassem ao trabalho – o que, obviamente, ocorreria usando-se como principais meios de transporte ônibus, trens e metrôs, colocando estes empregados na linha de frente do atendimento. Tudo isso em nome de um suposto “naufrágio da economia”, que corre o mesmo risco caso haja o colapso dos sistemas de saúde. Assim, a economia, neste momento, pode e deve ser socorrida pelo Estado; é isso que deveria ter sido reivindicado, e não o fim do isolamento social.
Esta pressão pela reabertura imediata é lamentável, já que uma maior circulação de pessoas coloca em risco os trabalhadores das atividades essenciais, aqueles que têm comorbidades e a população de um modo geral. Nas questões trabalhistas de proteção à vida e aos meios de mantê-la, é fundamental haver medidas para que tais trabalhadores, durante e após a pandemia, possam sobreviver à emergência. Podemos até questionar se as ações foram suficientes e se não foram implantadas muito lentamente, mas jamais se deveria questionar o necessário isolamento, defendido por todas as entidades respeitáveis da área, no âmbito nacional e internacional. Trata-se, inclusive, de garantir o direito fundamental da personalidade, à vida dos que trabalham ou não. Em momentos nos quais o sistema de saúde pode ficar sobrecarregado, advogar o contrário coloca em risco a saúde coletiva. Justo a saúde, que é um direito fundamental, um direito da personalidade, ou seja, garantia da dignidade da pessoa humana.
Uma das medidas mais polêmicas foi a que permitiu a redução de jornadas e salários e até a suspensão do contrato de trabalho por acordo individual. Do muito que poderia ser dito nesta data sobre a questão econômico-trabalhista, não posso deixar de destacar a autonomia da vontade concedida a quem não a tem, face à permissão de acordos individuais, porque se trata de um subordinado, dependente economicamente em relação a seu empregador, que neste momento se vê na situação em que dizer “não” ao acordo individual de redução de jornada e salário poderia custar o fim do emprego. Quem correria esse risco numa época destas? Certamente não haveria o que responder a não ser “sim”.
O STF entendeu por manter o acordo individual, contrariando frontalmente os artigos VI e XIII da Constituição, que só permitem a redução da jornada e salário “mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. Os argumentos segundo os quais o momento de crise exigia flexibilização são extremamente frágeis, pois o legislador constituinte não conceberia a possibilidade de redução de salário e/ou redução de salário e jornada, se não para momentos de crise, seja provocada por uma pandemia ou outras razões quaisquer.
A MP 936/20 ainda impôs, no artigo 11, a comunicação “pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração”. Qual seria o objetivo deste dispositivo, mantido pelo STF, se fosse para que o sindicato se quedasse inerte? Certamente não deveria ser para este fim! Sabemos que algumas empresas, como supermercados, farmácias, canais digitais, plataformas de aquisição on-line de bens e serviços, fábricas de máscaras, produtores de álcool, dentre outros, não são o tipo de negócio que está sendo afetado pela pandemia. Mas elas são exceção, e não a regra. O que necessitamos para que os sindicatos possam efetivamente representar os empregados promovendo efetivo diálogo social, especialmente em épocas de crise, e que pudessem avaliar, como representantes dos trabalhadores, a efetiva necessidade de redução ou não da jornada e renda?
Não temos dúvida de que é preciso respeitar a ordem constitucional vigente e as normas constitucionais. Ainda numa interpretação extensiva, não se pode ignorar os sindicatos; se eles são excluídos desse importante diálogo social, não é por falta de ferramentas virtuais para reunir a categoria nesse momento, mas pela falta de legitimidade dos sindicatos, condicionada pelo modelo sindical vigente, pois não houve interesse em substituí-lo quando dos debates acerca da reforma trabalhista, que poderia ter incluído uma ampla reforma do modelo atual.
Eventuais problemas na economia não podem ser desculpa para colocar trabalhadores em risco e promover retrocessos em conquistas sociais
O que o trabalhador precisa com urgência é de um novo modelo sindical! Uma verdadeira reforma trabalhista teria acabado com o sindicato único, promovendo competividade entre sindicatos e o fim da aplicação obrigatória das convenções e acordos coletivos para os não associados. É preciso que se tenha verdadeira liberdade sindical, pois, se assim não for, teremos sindicatos não representativos e, quando mais se espera que eles possam atuar, são excluídos pela própria corte suprema numa interpretação bastante controvertida do texto constitucional, contrariando convenções internacionais e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Sabemos que o mundo do trabalho já passa por profundas transformações com as novas tecnologias, ferramentas que estão sendo usadas mais do que nunca; mas que não sejam usadas para escravizar o trabalhador e mantê-lo conectado 24 horas, sem direito ao descanso e à desconexão. A tendência face aos impactos econômicos dessa crise será a proliferação da “uberização”, fenômeno que não ocorre por evolução natural das novas tecnologias, mas sim por falta de um emprego formal e garantido: a lei da oferta e da procura. Quem preferirá trabalhar 18 horas por dia para angariar o seu mínimo existencial ou, em plena Avenida Paulista, num patinete, entregar comida para tirar uns trocados? Construir uma sociedade mais justa é premente, e isso passa por uma representação forte dos sindicatos. Se estão fracos e sem representatividade, isso se deve ao modelo de sindicato instituído ao longo destes anos pelos representantes eleitos pela sociedade.
Eventuais problemas na economia não podem ser desculpa para colocar trabalhadores em risco e promover retrocessos em conquistas sociais. Que o Estado faça a sua parte, implementando medidas eficazes para o devido socorro às micro e pequenas empresas e aos informais, num momento ímpar da nossa história. Sem a participação efetiva do Estado não há como garantir a segurança sanitária e trabalhista, nem aos trabalhadores, nem a qualquer outro cidadão. Que possamos passar pela crise sem transformar a pandemia em motivo para mais retrocesso social, mas com consciência, seriedade e espírito de coletividade, pois, mesmo isolados, não alçaremos o nosso sonho de dias melhores se não nos unirmos por um mundo mais justo e mais igualitário. Não ao retrocesso social e sim à dignidade!
Leda Maria Messias da Silva é pós-doutora em Direito do Trabalho e professora da Universidade Unicesumar e Universidade Estadual de Maringá (UEM).
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