Há pouco, o STF decidiu pela possibilidade de extensão dos efeitos sucessórios do casamento para a união estável. Enfim, quem tiver uma mera relação de afeto com o falecido passará, agora, a ser herdeiro com direitos iguais aos dos filhos do mesmo morto.
A tese, equivocada por si só, é mais um capítulo da deriva radical que a afetividade tem propiciado ao direito de família. Se a afetividade fosse o fundamento e a razão de ser desse ramo jurídico, não restaria evidente um critério objetivo que impulsionasse a sociedade e o próprio direito a se ocupar da normatividade de tais situações.
O problema reside no fato de que há muitas situações de afetividade que nunca buscaram a força atrativa do direito, salvo para efeitos periféricos, a saber, para atribuir algumas consequências jurídicas acidentais, como, por exemplo, no passado, em que se indenizava o cônjuge pela dedicação exclusiva aos afazeres domésticos no caso de dissolução da união estável.
Logo, o fato de duas pessoas estabelecerem laços de afetividade não nos parece suficiente, por si só, para justificar toda uma regulação jurídica tão densa e fecunda, que possa ser erigida à condição de direito de família, cuja finalidade, desde sempre, foi a de regular e proteger uma estrutura antropológica objetiva.
No direito de família, a afetividade passou a ser confundida com sua versão reducionista, o sentimentalismo
Mas não é só. Se a bandeira do afeto é levantada a prumo no território do direito de família, logo, convém apreciar sua situação na estrutura do ente humano. A afetividade, estudada pela antropologia filosófica desde a antiga grecidade, é uma potência humana, pareada pela razão e pela vontade. Impulsionado pela fenomenologia no século 20, seu estudo chegou a novos patamares de conhecimento que vieram a reforçar os delineamentos daquela antropologia e, também, provocaram uma nova vitalidade na compreensão de sua efetiva importância e de sua ação recíproca com a vontade e a razão humanas.
Contudo, no direito de família, a afetividade passou a ser confundida com sua versão reducionista, conhecida por sentimentalismo, o qual restringe a dimensão afetiva, esta nobre realidade da natureza humana, a uma mera tendência permanente e consciente, que dirige e incita a atividade do indivíduo para um fim, como, por exemplo, as pulsões do prazer sexual e as da atração para a morte.
Assim, conhece-se muito da cadeia mecânica das sensações, imprescindível para o estudo da afetividade, mas pouco ou nada se sabe sobre seus fundamentos últimos. Um famoso romancista britânico já dizia que todo amor humano, em seu apogeu, tem a tendência de reivindicar uma autoridade divina, porque sua voz tende a soar como se fosse a vontade do próprio Deus.
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Segundo esse romancista, essa voz passa a nos dizer para não medir o custo, exige de nós um compromisso total, tenta superar todas as outras reivindicações e insinua que todo ato feito sinceramente “por causa do amor” é, portanto, bom e até meritório.
Sabemos que o amor erótico e o amor patriótico tentam, dessa forma, “tornar-se deuses”. Mas os afetos podem fazer o mesmo e até mais na relação familiar. Entronizar a afetividade como fundamento do vínculo familiar é o mesmo que pleitear do direito que se faça mais do que a realidade permite e sem fazer o que a realidade pede.
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