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Discordar não é pecado

Fotomontagem com protestos de rua de 2019. (Foto: Hedeson Alves/Albari Rosa/Gazeta do Povo)

No Natal, dia do perdão entre cristãos, milhões de brasileiros tiveram a preocupação de perdoar ou não  parentes e amigos por terem votado no Bolsonaro ou no Haddad. Desta decisão dependia quem convidar para a ceia ou para quem comprar presente.

Perdoamos pecados; de votos, nós discordamos. É possível perdoar quem mente, rouba ou se corrompe; não há por que perdoar ou não quem faz escolhas políticas diferentes das nossas.

Quem se preocupa em perdoar o voto de alguém confunde voto com pecado, mistura posição política com posição moral, partido com religião. Escolhas em questões religiosas exigem perdão; o voto diferente é apenas uma discordância a tolerar.

Perdoamos pecados; de votos, nós discordamos. Escolhas em questões religiosas exigem perdão; o voto diferente é apenas uma discordância a tolerar

No lugar da dúvida do perdão, devemos usufruir da estética da discordância. Eu discordo de quem votou no Bolsonaro, mas não tenho de perdoar amigos que fizeram essa opção. No lugar da dúvida do perdão, eu me pergunto onde errei, ao fazê-lo escolher a opção diferente da minha.

O eleitor jamais é culpado pela escolha de seu candidato. Quando vende seu voto é culpado da venda, um ato corrupto, não da escolha. Se não entendermos isso, vamos tolerar quem vende o voto para nosso candidato e condenar o que vendeu para o adversário. Isso explica a tolerância com a corrupção de filhos, ou de aliados. É como se os nossos não pecassem, porque defendem causas acima do bem e do mal.

Os políticos corruptos, os mentirosos, aproveitadores, podem precisar de perdão por seus crimes. Os que perdem uma eleição também precisam de perdão porque devem explicar diante da história onde erraram a ponto de o eleitor os expulsar do poder. Pena que no lugar da autocrítica estamos culpando os eleitores.

A atual confusão entre partidos e igrejas também leva a confundir decepção com discordância. Decepção decorre de erro moral, de pecado, não de opção política. Um parlamentar decepciona se teve desvio moral – corrupção, locupletação, imoralidades – e não pelos votos que tenha dado por convicção.

A sectarização partidária e o desconhecimento filosófico levam a optar-se por culpar o eleitor, para não ter de fazer autocrítica. Quem se preocupa em perdoar o amigo por ter votado no Bolsonaro ou no Haddad quer fugir da autocrítica, escapar do “ato de contrição” no confessionário, acobertar os erros e até pecados, como corrupção, de seus aliados ao longo de anos no poder.

Tentei fazer essa autocrítica com meu livro Por que falhamos: o Brasil de 1992 a 2018, mas o tratamento de partido como se fosse igreja afasta possíveis leitores que não aceitam o fato de que sua religião partidária pode errar. Mais uma prova de que estamos confundindo política com religião. Para os militantes, seus líderes e seus partidos-seitas são mitos ou santos, não erram, nem pecam.

Cristovam Buarque foi senador e reitor da Universidade de Brasília (UnB).

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