Os alvos da violência praticada no último domingo, 08 de janeiro, em Brasília, foram muitos. Pessoas, edifícios, instituições, mas também conceitos foram vandalizados, mais uma vez. É, no mínimo, um grande equívoco filosófico e histórico usar o conceito de soberania popular, implicado na frase “o poder emana do povo”, para empunhar paus e pedras, ou coisa pior, e arrasar a sede dos Três Poderes na capital federal. Dizer que todo poder emana do povo não quer dizer que está facultado aos membros do povo agirem como bem quiserem na hipótese de se sentirem lesados pelo Estado.
Dentro de uma democracia moderna, o monopólio da violência e de sua “irmã” civilizada, a justiça, pertence, por mandato constitucional, às instituições de Estado e o direito de resistência cabe ao povo dentro das instâncias de apelação disponíveis. Num Estado de exceção, na ausência dessas instâncias, quando o governo usa do seu poder concedido para subverter os mecanismos democráticos que o instituíram em primeiro lugar, aí sim, resistir seria defensável.
Nossa Carta Magna não abre espaço para que esse exercício direto do poder pelo povo se traduza em terrorismo doméstico, vandalismo e atentados contra as instituições democráticas.
Não estamos imersos em um Estado de exceção. Não encontramos em filósofo algum, que valha o seu sal, sustentação para a ideia de que a insatisfação ou indignação de um grupo, ainda que numeroso, é justificativa legítima para pegar em armas, brancas ou de fogo, e atentar contra as Instituições de direito. Os mecanismos democráticos que estabelecem governos e sustentam o contrato social, sendo o principal deles eleições livres, estão sendo respeitados. Não há nada que comprove o contrário, para além de teorias conspiratórias.
O artigo primeiro da Constituição Federal de 1988 é claro em seu parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Nossa Carta Magna não abre espaço para que esse exercício direto do poder pelo povo se traduza em terrorismo doméstico, vandalismo e atentados contra as instituições democráticas, como visto em Brasília, no domingo passado.
“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I– plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”, é o que esclarece o artigo 14. As duas primeiras formas de participação são consultas direta ao povo, conferindo-lhe proximidade à tomada de determinadas decisões. A terceira forma introduz a possibilidade de que membros da população, organizados em grupos, tenham alguma iniciativa legislativa.
As possibilidades de participação política aumentada é que constituem um dos elementos fundamentais do que nossa Constituição chama de “Estado Democrático de Direito”. Como pode o lema em questão figurar ao lado de clamores por intervenção militar e toda sorte de quebra institucional, que significariam, contraditoriamente, menor participação popular, subtração de direitos penosamente conquistados? Como podem alguns, em sã consciência, misturar soberania popular e golpismo? Ou é consciência turvada ou é má-fé deslavada.
Daniel Carvalho de Paula, bacharel, mestre e doutorando em História pela USP, é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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