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Outro dia desses, ouvi uma mulher dizendo ser “100% mãe: 97% devotada e 3% egoísta”. Imediatamente, outra mulher (que não gostou, talvez, da diferença enorme na equação) falou que ela renuncia “às mulheres para cumprir seu papel materno, mas acima e em prejuízo de todas as outras identidades femininas”.
Nesse ponto, tive um tilt cerebral. Afinal, o que a dita cuja queria? A inversão dos valores nas variáveis da equação? E, nesse caso, poderíamos manter a veracidade da asserção “100% mãe”? Ou, sob outro ângulo, quem gostaria de ter uma mãe 3% devotada e 97% egoísta?
Sabemos bem o que está por detrás dessa antipatia por uma boa mãe: um feminismo que perdeu seu norte e que, ao defender com liberdade de expressão o que pensa ser o certo a fazer, ataca a liberdade de expressão de quem não pensa igual dentro do mesmo sexo, anuncia uma “agressão sexual” latente quando um homem senta no ônibus de pernas abertas e invade igrejas com mulheres estultificadas gritando “mais ovários e menos rosários!”
Nas outras formas mais inteligentes de feminismo, as mulheres acentuam suas legítimas demandas porque, até há pouco tempo, eram legal e injustamente tratadas como desiguais. E as iniquidades ainda permanecem em muitos campos da vida social.
Contudo, aquilo que é mostrado como um sadio feminismo não vai além de um “chamado da tribo”, como, de resto, podemos notar em muitos outros “ismos”. É assim que Popper chama a irracionalidade do ser humano primitivo, o qual descansa no recôndito mais profundo de todos os civilizados e que nunca supera totalmente a saudade atávica daquele mundo tradicional – a tribo –, em que o homem ainda era parte inseparável da coletividade e onde se sentia seguro, porque subordinado ao feiticeiro ancião ou ao cacique todo-poderoso, os quais tomavam todas as decisões por ele.
Livre de responsabilidades e submetido, como um animal, ao vai-e-vem da manada, esse homem resta adormecido entre os que falam a mesma língua, adoram os mesmos deuses, praticam os mesmos costumes, condenam o diferente e odeiam o outro, o qual pode ser responsabilizado por todas as calamidades que venham a assolar sua tribo.
Por isso, quando surge uma ameaça à unidade coletiva, basta acionar o “chamado da tribo” e seus membros, por pensarem como rebanho, agirão como um rebanho. O feminismo acima ilustrado, hoje, é o exemplo mais pronto e acabado dessa bovinidade intelectual, embora muitos outros “ismos” se esforcem por superá-lo.
Todavia, o “chamado da tribo”, qualquer que seja a tribo, não fica por aí. Em todo esse processo de substituição do senso comum por um “não senso” comum, boa parte da mídia exerce um papel destrutivamente ímpar. Na Carta sobre o Humanismo, de 1947, Heidegger já havia escrito que “a linguagem está a serviço da mediação dos canais de comunicação pelos quais a objetivação se difunde como acesso uniforme de todos a tudo, ultrapassando qualquer limite. É assim que a linguagem cairá sob a ditadura da opinião pública: ela decidirá – antecipadamente – o que pode ser compreensível e o que deve ser descartável como incompreensível”.
Sempre é possível distinguir entre a “opinião pública real” e a “opinião pública midiática”, na qual, hoje, devemos incluir as redes sociais, pois o rótulo de influencer não é gratuito e nem inocente. Mas, muitas vezes, a opinião pública midiática se insinua como opinião pública real e a maioria silenciosa desta vê-se tolhida ilegitimamente, porque sua régua é bem diferente daquela manejada pelos donos do poder midiático.
Então, juntemos o “chamado da tribo” com a “opinião pública midiática” e o resultado será um fenômeno explosivo: modos de vida e opiniões que mereceriam o rótulo de “grosseiramente corretos” vão se fazendo “culturalmente corretos”. E, nas redes sociais, o dado grosseiro, pelo grau e alcance de difusão, torna-se um dado estúpido, sendo materializado, por exemplo, pela viralização de hits, imagens e vídeos, como se a própria difusão fosse um valor ou como se o meio fosse, em si mesmo, a mensagem.
Muitos usam o termo “ditadura” para caracterizar este fenômeno cultural. Contudo, a ditadura implica num poder externo concentrado que força os outros a fazer o que não querem, e o quadro atual pressupõe um certo gosto e deleite na entrega de nossa liberdade individual. Por isso, parece-me mais acertado dizer que se trata de uma “servidão voluntária”, para usar a expressão de Étienne de la Boétie, escrita em meados do século 16: “É o povo que escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre a servidão e a liberdade, ele prefere abandonar os direitos que recebeu da natureza para carregar um jugo que lhe causa dano e o brutaliza”.
Sempre me recordo disso quando, em certas redes sociais, a celebridade, voluntariamente, mostra-se seminua, abre sua intimidade do lar como se estivesse num divã ou num confessionário, ou discorre sobre sua privacidade sexual com requintes detalhistas, como se tudo isso tivesse virado uma tremenda trivialidade. Talvez seja isso mesmo, porque esta servidão voluntária faz os indivíduos desaparecerem numa massa anódina e, para superar isso, é preciso mobilizar a concorrência por meio daquilo que choca e chama a atenção, ainda que, como efeito, no dizer de Taylor, reste o sufocamento da criatividade e o advento da autoestultificação.
Até porque a trivialidade propriamente dita não dá audiência: basta lembrar que, nos últimos anos, só houve uma série televisiva com coragem para enfrentar essa verdade. Chamava-se The Mind of the Married Man. Não teve sucesso entre as massas, porque a turma preferia assistir às “Spice Girls” de Sex and the City.
Este quadro, marcado pelo amor à servidão voluntária, é desalentador, até porque parece que a servidão nunca foi tão voluntária como no século 21. Servidão e liberdade dependem de uma escolha clara e consciente, ainda que nossa preguiça mental prefira permanecer na zona de conforto das razões do “chamado da tribo” e da “opinião pública midiática”.
Como efeito, o culturalmente correto, com o tempo, passa a ser monótono e o “grosseiramente correto”, que o pressupõe, cristaliza-se numa regressão à escravidão voluntária da ignorância que, como sabemos, bem depois da liberdade, é a última coisa a se perder.
André Gonçalves Fernandes, post Ph.D., é juiz de Direito, professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).