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No ano de 1690 deu-se a Batalha de Boyne (Irlanda), ocasião em que a campanha do protestante holandês Guilherme de Orange (1650-1702) derrotou definitivamente a resistência católica contra a usurpação do trono de seu sogro, o rei Jaime II (Inglaterra e Irlanda) e VII (Escócia). Menos conhecido, talvez, seja o fato de que, ainda sob o reinado de seu irmão (Carlos II da Inglaterra), o futuro rei Jaime II – criado protestante, mas convertido à fé católica já adulto – recusou-se a prestar o “Test Act 1673”, um juramento contra a fé na transubstanciação do pão e do vinho na missa, imposto a partir daquele ano pelo parlamento a todos os ocupantes de postos civis e militares, atitude que lhe custou o cargo de chefe da Marinha Real Britânica (Lord High Admiral). Dizia o texto do juramento:

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“Eu, (N.), declaro que acredito não haver, de modo algum, qualquer transubstanciação no sacramento da Ceia do Senhor, ou nos elementos do pão e do vinho, durante ou após a consagração dos mesmos por qualquer pessoa.” (Test Act 1673)

Tornada pública a sua conversão ao catolicismo e uma vez coroado em 1685 (Carlos II não deixara filhos legítimos), a preocupação de que uma dinastia católica voltasse a comandar um império amplamente protestantizado se espalhou rapidamente pela Europa e culminou na denominada “Revolução Gloriosa” (1688), festejada no meio liberal-conservador por consolidar a monarquia parlamentarista e abrir caminho à Revolução Industrial meio século depois – e à posterior e consequente reação socialista, diga-se. Já o maçom e pai do conservadorismo anglo-saxônico, Edmund Burke (1729-1797), um século depois da recusa de Jaime II, aceitaria prestar o mesmo juramento para assumir sua vaga no parlamento britânico, do que se pode depreender que suas célebres reservas à sanguinária Revolução Francesa (1789-1799), de que foi contemporâneo, não eram propriamente contra o espírito revolucionário, mas contra o seu desdobramento célere e truculento. Na medida em que seu instinto de conservação não chegasse a retroceder a uma Inglaterra católica, em que ainda se adorava aquele suposto “pedaço de pão”, o prudente conservadorismo de Edmund Burke permanecia liberal e revolucionário – portanto, incapaz de impor obstáculo efetivo ao ímpeto dissolvente da Revolução.

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Por mais que o naturalismo moderno não o compreenda, a fé na presença real de Cristo na Eucaristia – corpo, sangue, alma e divindade – é o eixo da Cristandade, o fundamento da verdadeira civilização, porque mantém uma singular conexão estabelecida pelo próprio Cristo entre o Céu e este mundo. Foi ela também o motor da reconquista ibérica sobre os muçulmanos na Idade Média e de seu transbordamento transoceânico até o Novo Mundo. Só por ela se pode entender a majestade arquitetônica das catedrais góticas, pois se aos governantes deste mundo dedicam-se palácios e castelos, com muito mais justiça deve-se cobrir de pompa o Rei dos Reis, fisicamente entronizado no diminuto sacrário, em torno do qual, para abrigo e adorno dignos, constroem-se os templos católicos. Nossa sustentabilidade civilizacional depende a tal ponto da fé na Eucaristia que nossas misérias sociais contemporâneas se podem mesmo medir pelo grau de afastamento humano dessa transcendente realidade. Em outras palavras, não existe "ocidente cristão" sem a fé na transubstanciação (ao leitor interessado, já abordei com mais profundidade o tema em outro artigo para a Gazeta do Povo).

Lamentavelmente, porém, são muitos os padres e bispos de hoje notórios por seu contra-exemplo público de apostasia, além de outros tantos mais afeitos à vaidade e ao relaxamento moral de celebridades do que ao prudente recolhimento sacerdotal. Convém assinalar, porém, que a força com que tal estado de coisas se desencadeou entre as fileiras romanas advém grandemente da protestantização da liturgia e da espiritualidade católicas a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), com graves consequências relativas à missa e à fé na Sagrada Eucaristia. Um sintoma especialmente notável foi a progressiva tolerância a se receber a comunhão de pé e na mão, em vez de recebê-la de joelhos e na boca. Tal abertura remonta aos reformadores protestantes, que, conforme recobrado acima nestas linhas, desde o século XVI desejavam tirar do fiel a crença na presença real de Cristo nas espécies consagradas, exemplificando o célebre adágio relembrado pelo Papa Pio XII na encíclica Mediator Dei, de 1947: “lex orandi, lex credendi”. Em outras palavras, a liturgia – ou o nosso modo de rezar – determina o nosso modo de crer. Assim, uma liturgia progressivamente tolerante a tão pouca reverência diante do corpo do Rei dos Reis, a despeito do risco de que seus fragmentos se percam, acaba por enfraquecer a fé de que a comunhão vai além do banquetear-se com um mero pedaço de pão. Ou bem Cristo está fisicamente presente na Eucaristia e, portanto, são divinas as migalhas sacrilegamente perdidas como poeira nas mãos dos fiéis, ou bem Cristo e a constelação de santos forjados em sua Igreja não passam de mentirosos e neuróticos. Não há terceira opção.

A esse respeito, o documentário “Comunhão na Mão, o Triunfo da Desobediência”, produzido e recém-lançado pelo Centro Dom Bosco, deita luzes sobre o fenômeno por meio de uma investigação que conduz a um seminário interditado na Argentina, revelando casos surpreendentes de perseguição eclesiástica a padres zelosos da dignidade de Jesus Eucarístico. Partindo da percepção de que o que começou como forma alternativa tornou-se prática obrigatória em muitas paróquias, o protagonista Alvaro Mendes relembra o episódio pessoal em que teve a comunhão negada por um padre ao pôr-se de joelhos para recebê-la na boca (o padre exigia entregá-la na mão).

O filme traz ainda outros casos semelhantes e cenas de sacrilégios flagrantes, além de entrevistas com leigos, intelectuais, padres e o bispo D. Athanasius Schneider (Cazaquistão). A película, disponibilizada pelo Centro dom Bosco em sua plataforma própria desde 6 de dezembro, já teve exibição especial em cinemas de seis cidades (Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, São José dos Campos, Brasília e Recife) e até janeiro será exibida em pelo menos mais duas (Porto Alegre e Itajubá).

Numa das cenas um padre argentino afirma categoricamente que “não se pode negociar com o Corpo de Cristo”. A severidade de tal afirmação expõe uma crise de fé que, se entre o clero católico encontra-se grandemente difundida, tanto mais capilarizada encontra-se entre os fiéis. Para além das graves consequências espirituais dela decorrentes, não se poderia dar também sem graves consequências políticas, econômicas e sociais o rechaço à presença d’Aquele que, por um amor incompreensível ao gênero humano, redimiu-nos assumindo nossas misérias e, como se já não fosse tudo, quis estar conosco “até o fim do mundo” (Mt 28, 20). Segundo São Cirilo de Jerusalém (313-386), Doutor da Igreja, os novos batizados deveriam lamentar mais a perda de qualquer partícula da Hóstia do que a perda de ouro, de diamante ou de qualquer um dos membros de seu corpo. Neste tempo de Advento, em que toda a Igreja se prepara para a festa da chegada do Verbo que se fez carne e depois, pão, o documentário “Comunhão na Mão” vem lembrar-nos desta grave – porém terna e redentora – realidade.

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A todos os leitores da Gazeta do Povo, um Santo Natal.

Luciano C. Pires, católico, casado, pai de quatro filhos, professor e membro do Centro Dom Bosco.