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Do “gasto é vida!” ao teto de gastos: lições para nossas lideranças políticas

Paulo Guedes, ministro da Economia. (Foto: Alan Santos/PR)

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Recentemente, ao ler um artigo que apontou o Brasil como o país que mais expandiu os gastos primários entre 2008 e 2019, em comparação com outros 20 países selecionados entre as mais importantes economias globais e da América Latina, veio-me à lembrança um momento crucial do governo Lula e de toda a era PT.

Em 2005, a equipe econômica do então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, estava elaborando uma proposta de se atingir um déficit nominal zero por meio da limitação (por lei) do crescimento dos gastos do governo abaixo do crescimento do PIB. A então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, rechaçou a proposta, classificando-a como “rudimentar” e supostamente disse que “gasto público é vida!”. Dilma ganhou a confiança do chefe, o presidente Lula, e ele a escolheria, anos depois, como a sua sucessora.

Pouco tempo depois, em 2006, a Petrobras descobriu jazidas gigantescas de petróleo no pré-sal, com o barril a US$ 65. O governo passou a se preocupar mais com o excesso de receita que o petróleo traria que com os gastos. Um pouco antes da crise de 2008, foi instituído o Fundo Soberano para “formar a poupança pública”.

Veio a crise de 2008, mas o Brasil pela primeira vez em sua história estava preparado para tomar medidas anticíclicas que puderam amortecer o impacto na economia brasileira. Nosso maior parceiro comercial, a China, fez um grande pacote de estímulos e nossas exportações se sustentaram bem nesse período. Dada a pouca abertura da economia brasileira, conseguimos sair bem da crise. Tanto é que, em novembro de 2009, a prestigiada revista The Economist colocou o Cristo Redentor subindo feito um foguete, dizendo que “o Brasil decolou”. Entretanto, na própria capa, a revista advertia que o principal risco dessa história de sucesso é a arrogância (“húbris”).

Em 2010, finalmente, o Brasil cresceu a taxas “chinesas”: 7,5%. Entretanto, esse crescimento foi anabolizado com gastos primários crescendo ao redor de 17%. Os gastos primários saltaram de 32% para 34,8% do PIB; o governo fez de tudo para deixar os eleitores felizes para que pudessem votar na sucessora no fim do ano.

Dilma, ao assumir o governo, aumentou a intervenção do Estado na economia, intervindo nas decisões de preço da gasolina na Petrobras, sendo mais tolerante com a inflação (sempre próxima ou ultrapassando o teto da meta) e forçando os juros para baixo, com a anuência do presidente do BC, Alexandre Tombini. Fez desonerações setoriais, desarranjou o sistema elétrico e usou e abusou do BNDES para criar “campeões nacionais”, na vã esperança de que essas empresas aumentassem o investimento. As empresas tomaram os empréstimos subsidiados e investiram em seus próprios projetos. A JBS, por exemplo, se tornou o maior frigorífico do mundo. Ou seja, boa parte dos recursos foi usada para se comprar empresas no exterior, não para aumentar os investimentos no Brasil.

Os gastos primários até que não subiram tanto (ao contrário, mantiveram-se entre 32% e 35% do PIB), mas os gastos parafiscais é que assustaram. De acordo com Samuel Pessoa, o balanço do BNDES chegou a ter o equivalente a 10% do PIB. Esses gastos não passam pelo orçamento e não entram no cálculo nem do superávit/déficit primário, nem do nominal (este último, incluindo os gastos de juros). Mas impactavam no aumento da dívida, pois o Tesouro entregava títulos de sua própria emissão ao BNDES, e este os vendia no mercado para fazer caixa.

Esse excesso de intervenção estatal e ausência de reformas que ajudassem no aumento da produtividade fez com que o Brasil sofresse a sua pior crise da história entre 2014 e 2016. O PIB caiu mais de 7% nesse período e a dívida pública saltou de 60% (2013) para 78% do PIB (2016). Nesse período, o Brasil deixou de ter superávit primário por causa do tão anunciado avanço dos gastos com previdência, que a classe política ignorou por tanto tempo.

Com o fim precoce da era Dilma (via impeachment) e da chamada “nova matriz macroeconômica”, a equipe econômica do presidente Temer conseguiu aprovar uma PEC pela qual grande parte dos gastos primários do governo não poderia ultrapassar, em termos reais, o mesmo nível de 2016 por 20 anos. Essa é uma medida semelhante àquela que foi rechaçada por Dilma em 2005, porém mais draconiana, pois perdemos muita flexibilidade fiscal. Esse chamado “teto dos gastos” ajudou o Banco Central a controlar as expectativas com relação à inflação e trouxe a Selic de 14% para 6% em pouco tempo. Ilan Goldfajn foi eleito, em 2018, o banqueiro central do ano pela revista The Banker.

A alternativa ao teto de gastos seria um ajuste fiscal muito duro, que causaria um aprofundamento do desemprego e da recessão. O teto de gastos nos possibilitou fazer um ajuste fiscal ao longo do tempo, mas sem perder de vista as reformas econômicas que devem abrir espaço para a redução de gastos por parte do governo (especialmente por meio da reforma administrativa) e para aumentar a produtividade da economia (com destaque para a reforma tributária).

O mercado, isto é, o conjunto de poupadores, que na sua grande maioria é formado por brasileiros, entende que foi preciso alterar a rota traçada em 2020 por conta da pandemia, fazendo com que os gastos subissem para financiar as atividades ligadas à saúde e à assistência emergencial para as pessoas de menor renda poderem sobreviver a essa fase terrível com dignidade. Entretanto, esse arranjo é insustentável; os gastos primários deste ano deverão ultrapassar os 40% do PIB, fazendo com que a dívida suba para perto de 100% do PIB. Se o teto de gastos for abandonado ou burlado, como na última proposta de prorrogar o pagamento de precatórios, o país pode cair em uma crise profunda.

O Brasil é rico em histórias de oportunidades perdidas pela classe política ao colocar seus interesses nas próximas eleições acima dos interesses das próximas gerações. Se o teto de gastos for desrespeitado, as perspectivas de reeleição não passarão de miragens.

Josilmar Cia, graduado em Economia, mestre e doutor em Administração de Empresas, é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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