Existe filme bom, filme clássico e filme hino – estes deslumbram esteticamente, imprimem ideias e não esquecemos. Shane – Os brutos também amam (EUA, 1953) é um desses. Assisti quando ainda jovem e até hoje lembro das imagens e da mensagem: a luta de trabalhadores sem-terra contra latifundiários, o amor discreto entre um homem e uma mulher e o fascínio de uma criança por seu herói. O filme Os Dois Papas é um filme hino. Agarra nossa mente com beleza plástica, sua mensagem e seus diálogos. Fernando Meirelles conseguiu fazer um dos raros filmes hino.
Em Shane, o diretor George Stevens utilizou a técnica de filmar com a câmera na altura dos olhos de uma criança e nos deu a inquietante perspectiva de assistir a história e entender personagens e cenários com a visão simples de um menino. Não sei o mistério da técnica usada por Fernando Meirelles, mas em sua obra vemos dois homens de físico mediano como se fossem gigantes, na deslumbrante e monumental paisagem do Vaticano.
Sabemos, entretanto, que ele fez grandes personagens pelo diálogo, postura e valor moral de cada um. A genialidade do diretor está em dar veracidade a uma obra que ele cataloga como ficção para representar uma realidade. É isso que faz de Meirelles um grande cineasta. Os diálogos passam veracidade porque são produto da matéria prima dentro de cada personagem, misturando moral e lucidez, ética e inteligência, sonhos, angústias, frustrações.
Do primeiro ao último encontro entre Bento XVI e Francisco I, este ainda Cardeal Bergoglio, percebe-se duas mentes brilhantes e diferentes, como em uma luta de esgrima no palco da História. Em Shane, vemos, com olhos de criança, tiros e murros entre lutadores de um lado ou do outro da história. Em Os Dois Papas, também nos sentimos crianças diante de dois lutadores gigantes com argumentos ideológicos, políticos, sociais e teológicos.
Quando escutamos um hino, reunimos o sagrado com nossa vida. O filme Os Dois Papas nos passa isso. Eles nos representam com nossos credos e nossas visões de mundo. Os Dois Papas, como os hinos, nos deixa com desejo de querer mais tempo de filme, e de querer mais líderes como eles: que dialoguem entre si, exatamente por discordarem, por entenderem diferentemente o presente e sonharem diferente futuro; e que sejam capazes de mea culpa e autocrítica como eles fazem de seus passados.
Pena que nossos políticos não fazem esta expiação pelos pecados da corrupção nas prioridades e no comportamento, a “pedofobia” de negar escola, saúde, alegria, a nossas crianças. Ainda não fizemos nossas autocríticas, confissões e nem aceitamos o diálogo com quem divergimos: não temos gigantes na política brasileira destas últimas décadas. E sem eles nenhum cineasta gigante consegue fazer o nosso filme hino da política.
Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília.
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