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Há alguns lustros vem-se formando, no Brasil, geração de jovens doutores, que o são com cerca de 30 anos. Eles passaram a vida, até então, lendo predominante ou exclusivamente literatura atinente a seus cursos acadêmicos; jamais (ou apenas episodicamente) leram Machado de Assis, Alencar, Adolfo Caminha, Aluísio de Azevedo, Eça, Camilo, quer dizer, o cânone do vernáculo, e literatura de formação geral. Têm léxico limitado, desconhecem vários recursos do idioma (mesóclise, contração pronominal, segundas pessoas), praticam vícios de linguagem (duplo sujeito, palavras-ônibus), cometem anglicismos, decalcam nas traduções, dissimulam sua inépcia com o lugar-comum de que “a língua muda”. São despreparados na arte de redigir e academicamente jungidos a fazê-lo: muitos fazem-no mal, com anfiguris, vícios, preposições erradas, deficiência de acribologia, estilo canhestro. Quem é carente de leitura de bons autores não se torna, jamais, autor rigoroso, hábil e elegante. Também a forma é conteúdo, e não somente o fundo.
Em filosofia, história, sociologia, vejo ruindades publicadas no Brasil, de mestres a pós-doutores: pesquisas superficiais, juízos descriteriosos, ilações frouxas, argumentação rasa e mal concatenada, conclusões tacanhas, vanilóquios, traduções erradas. Ao mesmo tempo, historicamente, abunda produção intelectual excelente, alheia às universidades: atente na multidão de intelectuais pretéritos destituídos de titulação universitária superior. Augusto Comte, Karl Marx, Antonio Gramsci, Ortega y Gasset, René Descartes, David Hume, Gilberto Freyre, José Ingenieros, Alain, Baltasar Gracián, John Locke, Edmund Burke, Bertrand Russell, Johann Goethe, Rocha Pombo, Capistrano de Abreu, David Carneiro, Ivan Lins e tantos mais. Tales, Sócrates, Platão, Aristóteles, Pitágoras, Cícero, Sêneca, Epicuro, Celso, Agostinho não tiraram mestrados nem doutoramentos; em contrapartida, a forma mental da maioria dos mestres e doutores é-lhes tributária.
Muitos apresentam-se como doutores ao exporem artigos jornalísticos, publicarem livros, darem conferências, manifestarem-se no YouTube: é legítimo fazê-lo, como descrição de sua titulação. Identificar-se como doutor recomenda a pessoa, em tese, como autoridade no domínio específico de seu conhecimento, do que não decorre sejam suas manifestações quaisquer equivalentemente respeitáveis, que tudo quanto produza (a começar por seus trabalhos de doutorado e tese) seja excepcional, que todas as suas opiniões sejam judiciosas, que dele sempre emanem imparcialidade, sensatez e rigor. Acreditar em contrário constitui a falácia da autoridade.
O doutorado não proporciona, como que magicamente, ao doutor, superiores qualidades intelectuais nem de outras ordens: é irracional e até absurdo reservar-se o cargo de reitor a doutores (administrar difere de pesquisar) e empobrecedor limitar-se a publicação de artigos em dadas revistas a doutores. No segundo caso, almeja-se selecionar os artigos por sua (putativa) elevada qualidade, graças à excelsa titulação de seus autores: é critério fundamentado na premissa de que tudo quanto o doutor produza seja infalivelmente conspícuo. Não o é.
Os doutores não são sumidades e a condição doutoral não deve ser mistificada: há doutores indoutos e doutos sem serem doutores. O doutoramento não corresponde à etimologia da palavra: ele não implica seja douto (muito instruído, erudito) quem se doutora nem atribui condição douta ao doutor: douto é quem angariou cultura ampla e profunda, é quem sabe muito de tudo; doutor é quem se aprofundou no conhecimento de parcela mínima do vasto saber humano e produziu pesquisa original. O doutoramento não supõe erudição nem cultura geral prévias, nem é nele que elas se adquirem: elas obtêm-se ao longo dos anos, pela acumulação paulatina de conhecimento, por via estudiosa, e não no cumprimento de créditos, de estágio internacional e na redação da tese. O doutoramento é passageiro; a vida estudiosa é permanente.
Até poucos anos atrás, mestrado e doutorado cumpriam-se ao longo de décadas, durante as quais o futuro mestre e doutor acumulava experiência pessoal, profissional e docente, e adquiria cultura geral (ou não). Atualmente, graduação, mestrado e doutoramento sucedem-se ao longo de escassos dez anos aproximadamente, sem que a ascensão dos títulos seja proporcional à aquisição de experiência pessoal, de cultura geral e literária, com o agravante do despreparo em língua portuguesa desde o curso secundário. O estudante concentra-se nos temas de sua formação e, provavelmente, a eles se limita. Escasseia-lhe tempo (e interesse) para formar cultura geral que não seja perfunctória. Indague a qualquer doutor quantos livros lê por ano (fora de seus estudos compulsórios) e quantos leu na vida: geralmente escassos. Doutora-se como conhecedor a fundo de quadrante estreito do conhecimento humano, e dotado de conhecimento raso ou nulo do quanto forma a cultura geral. Não me refiro a atualidades políticas, econômicas e que tais, senão à história, filosofia, literatura, arte, sociologia, antropologia, em suma, aos conhecimentos que devem compor o repertório intelectual mínimo do homem esclarecido. Já Augusto Comte e, depois dele, Ortega y Gasset alertavam para os males do especialista-ignorante, do doutor indouto.
Doutor despreparado em língua portuguesa, que não passou anos a ler bons autores vernaculares, que chega ao doutorado jejuno do cânone literário, é doutor alheio às formas superiores da plástica de seu idioma. Indague ao jovem doutor brasileiro quanto ele leu de Machado de Assis, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Lima Barreto, Vieira, Adolfo Caminha, Camões, Balzac, Shakespeare, Goethe, Júlio Verne, Dante, Homero, Virgílio (em traduções de qualidade): se tanto, os livros que o vestibular lhe exigiu (se lhos exigiu) e um ou outro de Saramago. Eis por que muitos jovens doutores redigem canhestramente, sem arte nem graça, até sem propriedade nem clareza, dependem de revisores (por sua vez de proficiência duvidosa) e certamente falham na desenvoltura oral na forma culta do idioma. Não se trata de tornar-se brilhante orador ou prosador, porém de redigir com distinção, falar com elevação e dar o bom exemplo aos demais: que o escol eduque a massa, por ser-lhe modelo.
Professor-doutor jovem, ele permite-se alguma coloquialidade porque desafeito à disciplina da eloquência apurada, que dissimula a pretexto de “comunicação”. É dos que hesitam ao expender mesóclises, omite preposições, é viciado na locução “a gente”, dissimula seu subpreparo em idioma com as criancices de que “a língua muda”, “fala brasileiro” ou “para ser entendido”. Fluente em segundo e terceiro idiomas, devera ser excelente no próprio.
Nem todo doutor é ótimo professor e há ótimos professores sem mestrado nem doutorado: lecionar difere de pesquisar.
Longe de mim menoscabar o potencial valor dos doutorados no acréscimo do saber humano e sua utilidade possível ou desdenhar do esforço envidado para a produção de obra meritória. Longe de mim, por outro lado, creditar automática (e ingenuamente) superior qualidade às produções quaisquer dos doutores ou tributar à condição doutoral especial reverência. Ressalvadas as exceções, refiro-me sobremodo ao Brasil, cuja produção universitária passa por ser das menos relevantes no concerto internacional.
Não é o doutorado que inerentemente engrandece os trabalhos do sujeito, mas é o sujeito que engrandece (ou não) o doutorado com a qualidade do quanto produz e mantém-se (ou não) à altura de seu título, com seus trabalhos posteriores à obtenção do título.
Valorizemos o saber (doutoral ou não) e a condição douta (com doutorado ou sem ele); não nos iludamos com o título de doutor.
Arthur Virmond de Lacerda Neto é mestre em História do Direito e autor de Herança do direito romano (no prelo).